Visões do Paraíso
Alguns jornais deram a notícia do pequeno incidente e existem, a circular na internet e nas redes sociais, vários vídeos que o documentam. Por eles sabemos que há alguns dias, no Cacém, numa acção de pré-campanha do seu partido para as eleições autárquicas, o deputado André Ventura foi abordado por um senhor muitíssimo exaltado que se identificou orgulhosamente como “africano”. Esse homem, do qual nada sei, acusou Ventura, como se ele fosse a personificação de todo o mal que alguns africanos e ocidentais woke consideram que Portugal terá feito em África: “Eu tenho orgulho enquanto africano” — assumiu o senhor em causa. — “Você invadiu o meu país, o meu continente durante cinco séculos” — acusou. — “Cinco séculos de escravidão, Ventura sabe disso ou não? Ventura, durante cinco séculos… O que é que foram lá fazer? Foram roubar os nossos ouros, foram roubar os nossos diamantes, foram-nos escravizar. Fomos roubados, os ouros, os diamantes. A culpa é dos portugueses.” Estava tão exaltado que teve de ser contido pelo segurança do deputado, o que não o impediu de continuar no mesmo registo acusatório: “Você é ladrão, você é racista. Ventura é racista.”
Este episódio não tem em si mesmo muita importância. Trata-se, em suma, de um senhor muito zangado e mal informado que confronta um político com acusações mais ou menos descarriladas, o que é comum nas campanhas eleitorais. Todavia, quando olhado num contexto mais amplo percebe-se que não é um caso isolado, mas sim um sintoma de uma desinformação mais geral e a ponta de um iceberg que nos pode fazer naufragar mais à frente. Leio com frequência, na internet e nas redes sociais, as opiniões de vários africanos ou afrodescendentes que têm uma visão idêntica ou parecida, e sei que ela deve muito à propaganda woke, mas suponho que deva ainda mais aos bancos da escola. A forma como a História é ensinada em São Tomé e Príncipe, Angola, Cabo Verde, Moçambique ou na Guiné-Bissau não é da minha conta. Suspeito que seja em muitos casos uma História muito formatada ideologicamente e já escrevi sobre isso num artigo no Observador cujo título — “Não quero que se ensine esta História aos meus netos” — é claríssimo quanto ao que penso sobre esse assunto. É que, se nada tenho que ver com as versões da História que os governantes das ex-colónias portuguesas decidem que deverão ensinar-se às suas crianças, tenho tudo que ver com o que se passa nas nossas escolas.
Aí vejo, com preocupação, que versões próximas desta que o irritado senhor africano verbalizou no Cacém, na sua altercação com André Ventura, são transmitidas aos nossos alunos, não só por alguns professores, mas por curiosos com pretensões lectivas. Já se esqueceram que Mariana Mortágua foi a uma escola da Amadora dar uma espécie de aula/conferência sobre escravatura e transmitir várias asneiras e ideias erradas? É preciso que os responsáveis pelo Ministério da Educação estejam muito alerta, muito atentos, às versões da história colonial de Portugal que se transmitem nos programas lectivos para que não haja uma multidão de Marianas Mortáguas nas salas de aula das nossas escolas a produzir cabecinhas com ideias idênticas à do exaltado senhor que confrontou André Ventura, no Cacém.
Mas eu diria que esse é apenas um dos aspectos que é preciso acautelar. Há um outro, mais arreigado, que exige que se vá mais fundo. Refiro-me à necessidade de desfazer a ideia subjacente de que Portugal foi levar a violência e o arbítrio a mundos até então paradisíacos. As ideias da inocência e brandura do africano, que contrastariam com as da cobiça e agressividade dos europeus, são referenciais muito antigos que persistiram durante os séculos em que, salvo raras excepções, e por causa da febre-amarela e da malária, o homem branco não conseguiu passar da orla costeira. Já no século XVI João de Barros, referindo-se àquilo que designava por “Etiópia” — isto é, a África subsariana —, lamentava que estivesse cheia de “mortais febres” que impediam a penetração dos portugueses no seu interior, algo que, a não ser por causa dessas doenças, seria supostamente fácil visto os seus habitantes serem gente “pacífica, mansa e obediente”. Se bem que existisse uma outra imagem, menos rosada, dos africanos, este tipo de idealização da doçura ou brandura dos negros foi-se mantendo ao longo do tempo. Em Março de 1822, por exemplo, o jornalista de O Compilador, escrevia que os “incultos africanos” eram “mais virtuosos” e “mais inocentes” do que os portugueses. “Retirados lá nos seus bosques e choupanas” esses africanos nunca teriam forjado “nos seus sossegados desertos, pesadas correntes para virem manietar entes da sua espécie”, como faziam os brancos que lá iam para os arrancarem “da sua família, dos seus lares e da sua Pátria”.
Esta imagem é uma rematada fantasia romântica, mas curiosamente ainda é a que está subjacente à irritação do senhor africano que interpelou André Ventura, no Cacém, e à da gente woke que nos massacra os ouvidos com a culpa do homem branco. Dito de outro modo, a acusação feita aos brancos pressupõe um mundo idílico em África, que os intrusos teriam ido perturbar e desregular. Mas terá sido assim? Não será uma total ingenuidade pressupor uma coisa dessas?
Houve um tempo em que muitos adolescentes, seguindo a opinião supostamente científica e abalizada de adultos como Timothy Leary, acreditaram que certas drogas alucinogénias, na dose adequada, fariam com que uma pessoa atingisse outros níveis de consciência e se ligasse de forma mais harmoniosa com o que a rodeava, ou seja, que o consumo generalizado dessas drogas iria fazer do mundo um sítio melhor. Era a época da cultura psicadélica, em que as vedetas da música pop consumiam profusamente essas drogas e faziam a sua apologia. Foi nesse tempo, mais precisamente em 1968, que os Moody Blues, por exemplo, gravaram Visions of Paradise, uma canção sobre as visões deslumbrantes, os inigualáveis sons, a pureza de sentimentos e os imaginários paraísos a que o consumo de drogas psicadélicas os levava. Muitos dos jovens que viveram esse tempo sabem que então se acreditava que as flores, o LSD e o amor poderiam mudar para sempre as mentes das pessoas. Claro que a realidade era muito diferente dessa ilusão, o que cedo se percebeu quando, sob o efeito do LSD, houve pessoas com crises paranóicas que feriram outras para se defenderem de atacantes inexistentes, ou que se lançavam de janelas, convencidas de que voavam, ou, ainda, que viam baratas a subirem pelos seus corpos e gritavam, horrorizadas, por não conseguirem afastá-las. Ou seja, longe de abrir as portas a um paraíso as drogas alucinogénias podiam abri-las ao horror.
Algo de equivalente se passa com a imagem da África inocente e pacífica que teria supostamente existido antes da passagem do Bojador ou da época do Colonialismo. É uma vision of paradise que não corresponde à realidade. Não, a África anterior a Gil Eanes ou a Diogo Cão não era um mundo pacífico e isento de maldade e de crueldade. Sim, havia por lá guerras, sacrifícios humanos, cobiça, escravatura. E, por isso, era bom que nas escolas, ao mesmo tempo que combatessem a ridícula ideia das inigualáveis perversidade e culpabilidade do homem branco, os professores procurassem desactivar, na cabeça dos seus alunos, esta espécie de LSD cultural woke que por mil meios — a escola, a Disney, etc. — constantemente lhes inculca a ideia romântica, mas redondamente falsa, de paraísos africanos (ou asiáticos ou americanos) anteriores aos Descobrimentos e que estes teriam ido desfazer e envenenar. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 21 de Julo de 2025).