Velhos políticos e outros cidadãos de segunda

23-10-2013 12:03

Nove da manhã, num subúrbio de Lisboa. As pessoas agrupam-se junto ao quiosque da esquina para lerem as primeiras páginas dos jornais e algumas não resistem à tentação de comentar as gordas. As mais suculentas de todas são as que acenam com a penalização dos chamados ricos — cuja definição varia consoante as conveniências dos governantes — e com a possibilidade de as subvenções vitalícias dos políticos poderem acabar, ou serem apenas concedidas a quem fizer prova da sua necessidade. Nos poucos minutos em que estive junto ao quiosque constatei que várias pessoas rejubilavam com essas hipóteses.

Eu, em contrapartida, fico repugnado com esta lógica de circo romano, onde os cônsules do momento governam à margem da lei, apoiados na chantagem e nos sentimentos da turba, à qual concedem o ilusório poder de virar o polegar para cima ou para baixo. Não sou político nem rico mas sou um cidadão português e tenho direitos. E todos os meus concidadãos, ricos ou pobres, políticos ou não, têm — ou tinham, até há pouco tempo — os direitos que eu ainda julgo ter. A essa luz, nenhum de nós devia ter de expor e de justificar o rol dos seus bens para que lhe seja pago aquilo que as leis lhe atribuiram.

Serão certas leis desequilibradas ou injustas? Mudem-se, nesse caso — e, ao que sei, a que concedia subvenção vitalícia dos políticos foi revogada em 2005 —, mas não se cortem arbitrariamente e ao sabor dos ventos da demagogia os direitos que as pessoas adquiriram à sombra das regras de um estado de direito. Quando atacamos retroactivamente os direitos dos políticos — ou dos supostos ricos, ou dos idosos — estamos a abrir a porta para que ataquem, a seguir, os nossos próprios direitos em nome do expediente do dia, ou da inveja ou da concepção que, do cume da sua altíssima sabedoria, os governantes têm a cada momento daquilo que deverão ser as necessidades de cada um de nós e o seu nível de riqueza não penalizável.

Sei que nem toda a gente pensa como eu. É, até, muito possível que a maior parte discorde de mim, o que não me surpreende. Desde meados de 2011 que os nossos governantes mistificam as questões e inventam bodes expiatórios para cobrirem os seus próprios erros. Desde que chegaram ao poder têm promovido a cizânia entre os governados e adubado a oposição entre vários sectores da sociedade, virando o privado contra o público, os trabalhadores contra os reformados, os velhos contra os novos, os pobres contra a classe média. Os resultados dessa metodologia política de atrito e de afrontamento estão à vista de todos. E num país onde os políticos são geralmente execrados, e onde as pessoas vivem mal e a inveja campeia, nada melhor do que uma vingançazinha contra os poderosos — ou alegadamente poderosos — para aquecer a alma das gentes. O que é uma enorme pena. Nós, portugueses, perdemo-nos muitas vezes em questões intestinas, gastamos as nossas energias em raivas paroquiais, odiamos o Sócrates, execramos o Relvas e, quando assim é, raramente vemos para além do horizonte que alcança o sino da nossa paróquia.

Trata-se de uma miopia muito compreensível. A minha actividade de historiador ensinou-me que, dentro da situação, as pessoas têm dificuldade em vê-la porque ela ainda está em movimento e não assumiu a sua forma final. Mas, sendo compreensível, esta miopia é perigosíssima, no sentido em que nos impede de ver os riscos mais importantes do que está em jogo e, no final do dia, essa cegueira castigará todos, e não apenas os ricos, os reformados e os políticos. Manuela Ferreira Leite tem toda a razão quando diz, a propósito do corte nas pensões de sobrevivência, que os nossos governantes estão subrepticiamente a subverter o sistema de segurança social e a convertê-lo numa coisa assistencialista. Quererão as pessoas que lêem as gordas nas ruas e esquinas deste país viver numa sociedade assente em deveres, direitos e garantias, ou num mundo de arbítrio, de caridade e de cabazes de Natal? - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Jornal i, 23 de Outubro de 2013).