Uma sátira sobre o tráfico transatlântico de escravos

22-10-2018 03:05

Corre nas redes sociais um pequeno vídeo que mostra, sob a forma de sátira, a origem do tráfico transatlântico de escravos, segundo Bolsonaro. De facto, o candidato à Presidência do Brasil, um homem que não é conhecido pela sua sapiência, disse há tempos, numa entrevista e referindo-se ao tráfico transatlântico de escravos, que os portugueses “nem pisavam na África” e que eram “os próprios negros que entregavam os escravos”.

No âmbito da presente campanha para as presidenciais do Brasil nasceu um vídeo que teatraliza e satiriza essas declarações. Esse vídeo mostra-nos, na primeira cena, três portugueses quinhentistas — um marinheiro, um piloto e um capitão de navio, de óculo na mão —, completamente perdidos numa praia africana, a que arribaram, e apenas interessados em reencontrar o rumo certo para seguirem a sua viagem até às Índias. Mas logo entra em cena um grupo de cinco africanos que vem ter com eles e cujo chefe lhes pede encarecidamente que os levem como escravos. Estabelece-se um diálogo, cheio de ironias, e o capitão branco, inicialmente muito renitente ao pedido dos negros, acaba por levá-los para o navio.

Esse filme, que faz sentido e tem a sua razão de ser no contexto das declarações broncas e simplistas de Bolsonaro, também está a ser usado aqui em Portugal, mas num outro contexto. De facto, à falta de verdadeiros e sólidos argumentos, aqueles a quem já chamei flagelantes ou politicamente correctos, ou seja, os que se comprazem em acentuar as supostas malfeitorias dos antigos portugueses, atribuindo-lhes as maiores crueldades da história, lançaram mão do referido vídeo brasileiro e do seu tom trocista, e introduziram-no, via Facebook, no debate público sobre o envolvimento de Portugal na origem e desenvolvimento da escravatura.

Eu não adoptaria uma abordagem satírica para tratar um assunto tão sério e tão trágico, mas uma vez que isso foi e continua a ser feito, o que importa perguntar é o seguinte: pode a sátira brasileira fazer sentido e ser usada no âmbito do debate que começou em Abril de 2017, na sequência da ida de Marcelo à ilha de Gorée? Pode, desde que não se distorça grosseiramente a realidade, como fez Jair Bolsonaro e como muitas vezes fazem, aqui em Portugal, os mencionados flagelantes politicamente correctos. Na verdade, esta sátira pode, até, ajudar-nos a compreender melhor como se montou o gigantesco horror do tráfico transatlântico de escravos se tivermos o cuidado de a completar. De que modo? Bastam dois pequenos retoques. Desde logo era importante que atrás dos descobridores, isto é, do piloto, do marinheiro e do capitão da caravela, tivéssemos outros brancos — o negociante, o povoador, etc. — a olharem cobiçosamente para os negros da praia. E um deles deveria dizer a esses negros que se estavam a oferecer como escravos:

— Venham, venham porque nós precisamos de braços para as plantações e as minas. Mas não queremos todos. Queremos só os mais saudáveis e robustos, porque iremos moê-los ou matá-los de trabalho.

E, por seu lado, o líder dos negros, deveria responder-lhes:

— Sim, escolham à vossa vontade, mas têm de deixar ficar aqui boas roupas e tecidos como esses que usam, e álcool e tabaco, que são muito apreciados por nós. Queremos também pólvora, fuzis e outras mercadorias. Espero que voltem a passar por aqui para continuarmos este negócio que é bom para vocês, brancos, e também para mim e para os meus. Ah, e só mais uma coisa importante: eu não vou convosco. Eu fico aqui. Vão estes (indicaria, apontando para os negros que estavam atrás de si).

Foi isto, de forma sintética, ultra-simplificada e satírica, para ficar no tom do vídeo brasileiro, que deu início e manteve durante quatro séculos a enorme tragédia do tráfico transatlântico de escravos. Tendo isso em mente é, então, altura de ver o referido vídeo - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Diário de Notícias, 22 de Outubro de 2018).