Trump e as deportações

12-03-2017 09:02

No século XIX, no Sul dos Estados Unidos, os escravos que já tinham acumulado a suficiente dose de coragem e de desespero para fugirem do horror que viviam nas plantações de algodão, tabaco ou cana, procuravam escapar para os estados do Norte, onde a escravidão já fora abolida. Havia mesmo uma organização de humanitaristas que os ajudava nessa fuga, dando-lhes protecção e acolhimento, que se designava por Underground Railroad. Mas, ao contrário do que geralmente se pensa, os escravos fugitivos não eram especialmente bem-vindos nos estados do Norte. A capacidade de os abolicionistas norte-americanos influenciarem as massas populares era muito limitada. Por outro lado, havia a crença generalizada entre a população branca de que o Sul
tratava os seus escravos com humanidade e, por isso, muitos não percebiam por que razão aquela gente fugia. E havia, claro está, sentimentos racistas da população do Norte, incrementados pela coexistência com negros livres que aí viviam e que eram concorrentes no mercado de trabalho.

Todavia, as coisas mudaram quando em 1850 se publicou uma lei, a Fugitive Slave Law, que punia com pena de prisão qualquer pessoa que ajudasse um escravo a fugir ao seu senhor. A lei permitia, além disso, que os agentes federais recuperassem escravos fugitivos em todas as partes do território nacional. Concedia-lhes, ainda, o direito de arregimentarem a ajuda compulsiva de qualquer cidadão livre, se isso fosse necessário para levarem a cabo a sua missão. Essa e outras medidas semelhantes indignaram as gentes do Norte. A visão de agentes federais arrastando um pobre escravo acorrentado pelas ruas de Boston, por exemplo, levou à desobediência civil e à manifestação irada de dezenas de milhar de pessoas, apenas contidas pela intervenção de uma força armada de 15 mil homens. Foram esses sentimentos de indignação, esse contacto directo com o sofrimento daqueles negros que assim eram deportados para Sul, para voltarem a ser escravizados, que contribuíram para mudar radicalmente a perspectiva que os brancos do Norte tinham sobre a escravidão e para agudizar as tensões políticas que levariam à Guerra Civil. Ou seja, a viragem da opinião pública da anterior posição de alheamento para uma propensão para a empatia com os escravos foi determinante em todo esse processo.

Lembrei-me disso ao ler notícias sobre a forma como parte da população norte-americana está a reagir, neste momento, às medidas da administração Trump para combater a imigração ilegal. Há cerca de 8 milhões de pessoas que, de acordo com a nova legislação, podem vir a ser deportadas e começam a surgir reacções a essa eventualidade. O bispo católico de San Diego apelou frontalmente à revolta e ao incumprimento da lei. A CNN fez uma reportagem junto de habitantes de Los Angeles que preparam casas para esconder imigrantes ilegais, e chamou a essa iniciativa o novo Underground Railroad. Bill Maher, uma voz muito escutada nos media norte-americanos, veio a público acusar agentes do ICE (Immigration and Customs Enforcement) de irem às salas de aula prender miúdos de 16 anos, imigrantes ilegais, para os deportarem para o México. Muita gente tem-se disponibilizado para acorrer aos locais onde estejam a verificar-se detenções de imigrantes ilegais, de forma a filmar as ditas e, depois, pôr as imagens a circular nas redes
sociais.

Por enquanto estas e outras notícias semelhantes são acontecimentos avulso e talvez não venham a passar disso. E é claro que a situação dos escravos no século XIX era muito diferente da dos actuais imigrantes ilegais. Não quero fazer comparações forçadas e muito menos sugerir que exista um risco sério de guerra civil nos Estados Unidos. Quero apenas dizer que há similitudes importantes entre as duas situações e que o que se passa agora evoca situações com uma antiga e altamente explosiva carga na História norte-americana. Daí que o resultado da política de Trump face ao problema da imigração ilegal e das consequentes deportações, vá
depender muitíssimo do lado para o qual a opinião pública venha a inclinar-se. É nessa arena que quase tudo irá ser jogado. E daí, também, que os estrategas de Trump tenham apontado alguns dos grandes jornais e televisões como seus principais adversários e tentem, antes do mais e como pré-condição para o eventual sucesso da sua política, desacreditá-los aos olhos dos cidadãos. Não são burros os novos inquilinos da Casa Branca - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez no Diário de Notícias, 12 de Março de 2017).