Trump e a História
No passado dia 27 de Março, Donald Trump assinou um importante documento que passou despercebido no nosso país, o que é pena pois esse documento visa pôr cobro a uma situação que tem vários pontos de contacto com o que se passa em Portugal. Trata-se de uma ordem executiva cujo título é Restoring Truth and Sanity to American History e que pode ser lida aqui.
A ordem executiva constata que nos últimos anos tem havido um esforço concertado para reescrever a história dos Estados Unidos “substituindo factos objectivos por uma narrativa distorcida impulsionada pela ideologia e não pela verdade”. Nessa narrativa, o legado nacional norte-americano de incontestável avanço nos planos da liberdade, dos direitos e da felicidade humana tem sido transmitido como se fosse inerentemente racista e nocivo. Em vez de promover a unidade nacional e uma melhor compreensão do passado comum dos norte-americanos, esse esforço para reescrever a história acentuaria as divisões sociais e alimentaria um sentimento de vergonha nacional, desconsiderando o progresso que a América fez e os ideais que continuam a inspirar milhões de pessoas em todo o mundo. A referida ordem executiva visa muito em particular a Smithsonian Institution. Considerando que foi, no passado, “um respeitado símbolo da excelência americana”, Trump lamenta que ela tenha vindo a promover narrativas que “apresentam os valores americanos e ocidentais” como “lesivos e opressivos”, e acrescenta que os museus “devem ser locais onde as pessoas vão para aprender e não para serem sujeitas a doutrinação ideológica ou a narrativas divisionistas que distorcem a história comum (dos norte-americanos)”.
Partindo dessa avaliação das coisas Trump decidiu incumbir o vice-presidente Vance de, em consonância com o Congresso, agir no sentido da “remoção de ideologia imprópria” dos museus, centros educativos e de investigação da Smithsonian, e de recomendar acções eventualmente necessárias para atingir esse objectivo político. Decidiu, também, ordenar ao Secretário do Interior, Doug Burgum, que avalie se desde 2020, monumentos públicos, estátuas e similares sob a jurisdição do estado foram removidos ou modificados “de forma a perpetuar uma falsa reconstrução da história americana e a minimizar a importância de certos acontecimentos ou figuras”, ou a enaltecer “ideologia imprópria”, e proceder de forma a corrigir esses entorses.
A medida de Trump provocou, segundo o Guardian, um indignado clamor e terá havido gente a assegurar que Trump quer acabar com a diversidade na historiografia americana. David W. Blight, que é professor de estudos afro-americanos e director de um prestigiado centro de estudos da Universidade de Yale (o Gilder Lehrman Center for the Study of Slavery, Resistance and Abolition) escreveu um artigo no New York Times no qual confessou considerar-se insultado e provocado e disse que “a ordem não é senão uma declaração de guerra política” aos historiadores, bem como à curiosidade de espírito de quem procure perceber os Estados Unidos através da visita a museus e locais históricos. Blight acusou a administração Trump de estar a adoptar o mesmo comportamento (woke) que condena e procura combater e, no Guardian, criticou Trump por querer impor aos historiadores americanos a forma de fazer História. Aliás, Blight comparou esta medida de Trump às dos Nazis, dos nacionalistas de Franco, de Mussolini e dos Soviéticos, e sublinhou que os americanos “não têm uma história oficial” que possa ser imposta pelo poder político. No mesmo jornal o seu colega Raymond Arsenault equiparou, quanto a níveis de ignorância e anti-intelectualismo, essa ordem executiva ao saque de Roma pelos Visigodos de Alarico, em 410, e considerou que ela faz lembrar um estado fascista. Houve, também, quem acusasse Trump de, ao tentar remover aquilo que designou por “ideologia imprópria”, estar pura e simplesmente a querer apagar a história negra.
Mas Blight, Arsenault e outros críticos desta ordem executiva estão a exagerar. Se interpreto bem, a medida de Trump não os proíbe, a eles nem a quaisquer outras pessoas, de investigar o que quiserem, e como quiserem, nem de leccionarem o conhecimento adquirido como entenderem ou de o tornarem público nos meios ao seu dispor. Apenas limita a deriva narrativa de instituições e espaços que de alguma forma dependem do estado federal, seja do Congresso, seja do Departamento do Interior. Ao contrário do que os woke dizem não se trata de censurar, mas de restaurar o espaço público como existia, repondo estátuas e monumentos retirados ou demolidos, e de contrariar uma ideologia que, do meu ponto de vista, é venenosa e que não me tenho cansado de denunciar e combater. Por outro lado, a Smithsonian Institution, que congrega actualmente bibliotecas, centros de investigação, o Zoológico Nacional, em Washington, e 21 museus — um dos quais é o National Museum of African American History and Culture, criado e dirigido em 2016 por Lonnie G. Bunch, que é, desde 2019, o presidente da instituição — depende de uma parceria público-privada na qual o estado federal garante mais de 60% do orçamento. Isto significa que Trump tem, por via do Congresso, uma palavra a dizer nesta matéria. E o mesmo se diga relativamente a uma parte do espaço público, que está sob a jurisdição do Departamento do Interior. Também aí pode pronunciar-se e deliberar sobre as estátuas que se removem ou repõem.
Claro que não compete ao presidente de um país dizer o que é a verdade histórica e o que os historiadores devem investigar, nem a que conclusões devem chegar, e em que termos as devem expor. Sei do que falo porque eu próprio passei, no Instituto de Investigação Científica Tropical, por situações semelhantes e sei dar valor à liberdade académica, tal como sei que é imprescindível assegurá-la. Mas quando se usa essa liberdade académica para, manifesta e confessadamente, tentar atingir objectivos políticos e para cercear a liberdade de expressão dos outros, então ficamos num dilema ou, pior, ficamos perante um nó górdio. E, assim sendo, talvez os políticos, por efeito de bumerangue, tenham tendência e justificação para pôr freios nessa liberdade. Dito de outra forma, eu teria preferido e defendido que em lugar de uma ordem executiva Trump tivesse posto em marcha uma ou várias entidades que desencadeassem e alimentassem um confronto de ideias na esfera pública. Mas tudo indica que, devido a anos e anos de wokismo e de vibrações pós-coloniais essas questões estão muito inquinadas e armadilhadas nas universidades americanas, onde as vozes que discordam dos dogmas woke têm dificuldade em fazer-se ouvir. Assim, a ordem executiva parece ser o caminho possível, ou pelo menos o mais expedito, para enfrentar uma séria ameaça ideológica aos valores do Ocidente. Não vivo nos Estados Unidos e não posso medir com rigor o proselitismo woke de Bunch e da Smithsonian. Mas pelos ecos que aqui nos chegam, suspeito de que seja grande. Convém, aliás, lembrar que o próprio Lonnie G. Bunch e mais gente da Smithsonian vieram até nós divulgar a sua visão das coisas de uma forma que critiquei aqui, aqui e também aqui.
É claro que Bunch e mais pessoas woke da Smithsonian ou de qualquer outra procedência estão inteiramente no seu direito de expor as suas ideias em qualquer parte do mundo livre. O que os woke não podem é fazer-se de ingénuos e de virgens ofendidas quando os fazem engolir duas colheradas da sua própria medicina. É que quem semeia ventos colhe tempestades e esta tempestade é muito merecida. Digo mesmo mais: esta medida vem confirmar o velho ditado de que Deus escreve direito por linhas tortas e também vem bater à nossa porta. É claro que em Portugal as coisas nunca chegaram ao ponto a que chegaram nos Estados Unidos ou no Reino Unido. Não houve no nosso país derrube de estátuas, apenas a manifestação do desejo de que fossem derrubadas ou removidas. O mesmo se diga relativamente ao Padrão dos Descobrimentos ou a certas pinturas da Assembleia da República. Mas houve, e ainda há, tentativas de cancelamento de quem não pensa pela cartilha woke, persistentes campanhas contra os manuais escolares e para reformular a disciplina de História nos ensinos básico e secundário, e nos museus e em exposições temporárias certas peças museológicas têm sido legendadas e explicadas com uma carga marcadamente ideológica, como sucedeu, por exemplo, com uma coleira metálica para a qual a ex-deputada Joacine Katar Moreira escreveu a seguinte legenda: “Esta peça, enquanto instrumento de desumanização e animalização da mulher e do homem negros, é pensada e criada pelos brancos colonialistas, refletindo os seus próprios sistemas de brutalidade”.
É por estas e por muitas outras que, ainda que tivesse preferido outro caminho, acho compreensível e quase ortopédico que Trump tenha emitido esta ordem executiva. Pode ser que, desde que não origine um wokismo de sinal contrário, ela ajude a pôr alguma razoabilidade na loucura que estava a tomar conta deste velho convento a que chamamos civilização ocidental. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 9 de Abril de 2025).