Transcrição de parte da introdução do livro Os Sons do Silêncio, Lisboa, ICS, 1999

29-07-2018 10:16

A questão da "vontade dos senhores" - aliás, como qualquer questão relativa às instituições escravistas - nunca mereceu muita atenção por parte dos historiadores portugueses. De uma forma à primeira vista surpreendente, um país que foi pioneiro do tráfico transatlântico da escravatura e que administrou o Brasil e Angola, respectivamente os maiores importador e exportador de escravaria, ou deixou por muito tempo quase em branco essa página da sua história ou, o que é pior, preencheu-a com uma manipulação da verdade, com uma vulgata do processo abolicionista, assente numa versão construída a partir de um punhado de episódios, quase sempre os mesmos - Congresso de Viena, decreto de 1836, bill Palmerston, caso da barca Charles et George -, e talhados à medida para fornecer uma imagem edificante do zelo humanitarista português.

A coberto dessa imagem, o país reservou para si o papel mistificador de pioneiro do anti-escravismo. Aqui e ali, surgiram algumas interpretações dissonantes que, acentuando o desinteresse dos portugueses pelo assunto, circunscreviam o processo de abolição a uma luta puramente pessoal, incompreendida e solitária, do visconde de Sá da Bandeira. Mas se o mito da prioridade abolicionista portuguesa era uma completa distorção da verdade, a polarização da atenção na figura de um homem excepcional, acabava por ter um efeito idêntico porque, focando em exclusivo o ponto mais brilhante da história, tendia a criar a escuridão em seu redor. Dividida entre estas duas perspectivas, entre a distorção e a escuridão, a curiosidade historiográfica nacional satisfez-se geralmente com referências laterais, remetendo a questão abolicionista para um pequeno compartimento da história colonial ou diplomática do século XIX. Com a memória fixada em cinco ou seis episódios pré-seleccionados e na figura proeminente de Sá da Bandeira, os historiadores portugueses contentaram-se, por norma, em percorrer uma e outra vez a mesma trama narrativa, como quem atravessa apressadamente uma ponte que une margens mas ignora por completo as águas que sob ela correm. E porque assim era, até meados da década de 1970 as mais seguras e detalhadas informações sobre o processo abolicionista em Portugal tinham de procurar-se em obras estrangeiras que tocavam tangencialmente o problema e que, geralmente, se haviam construído a partir de uma documentação exterior à sociedade portuguesa (5).

Foi só a partir de 1974 que, graças aos trabalhos de José Capela e de Valentim Alexandre, a história da abolição do tráfico de escravos português começou a adquirir alguma espessura e sonoridade. Estes dois historiadores não terão produzido mais do que uma meia dúzia de textos onde abordaram, por vezes de um modo subsidiário, algumas facetas do problema anti-escravista, mas essa pequena produção bastou, ainda assim, para enriquecer substancialmente o quadro de referência sobre o abolicionismo em Portugal e para estilhaçar vários dos mitos construídos em seu redor (6). Contudo, os trabalhos deCapela e de Alexandre não esclareceram decisivamente a questão da "vontade dos senhores", em boa parte porque não se debruçaram sobre a "vontade" em si mesma, tal como se terá manifestado por via da acção e da palavra, da inacção e do silêncio significativos. Ainda que tenham prestado atenção aos aspectos activistas da política abolicionista e ao posicionamento de algumas personalidades mais marcantes, nenhum dos dois historiadores analisou detalhadamente aquilo que os portugueses pensavam sobre o abolicionismo, possivelmente por não terem descortinado motivo ou matéria suficiente para o fazer.






(5)- De assinalar que, na década de 1960, Joaquim J. de Carvalho produziu uma muito aceitável tese de licenciatura sobre o assunto que, infelizmente, não chegou a ser publicada: L'abolition de la traite en Angola (1836-1845). Aspects législatifs et diplomatiques. Université Catholique de Louvain, 1964.

(6)- José Capela, Escravatura: a empresa do saque. O abolicionismo, 1810-1875, Afrontamento, Porto, 1974; id., A burguesia mercantil do Porto e as colónias (1834-1900), Afrontamento, Porto, 1975; id., As burguesias portuguesas e a abolição do tráfico da escravatura, Afrontamento, Porto, 1979; id., "Abolicion y abolicionismo en Portugal y sus colonias", in Francisco de Solano e Agustín Guimerá (eds.), Esclavitud y derechos humanos. La lucha por la libertad del negro en el siglo XIX. C.S.I.C., Madrid, 1986, pp. 577-603; Valentim Alexandre, Origens do colonialismo português moderno (1822-1891), Sá da Costa, Lisboa, 1979; id. "O liberalismo português e as colónias de África, 1820-1839", in Análise Social, 16, 61-62, 1980, pp. 319-40; id., "Portugal e a abolição do tráfico de escravos (1834-51)", in ibid., 26, 111, 1991, pp. 293-333.