Transcrição da revista Penélope, nº 14, 1994, pp. 105-106

30-07-2018 12:59

Hernâni Cidade distingue com acuidade, e a respeito do problema da escravatura dos índios, a legislação do seu cumprimento; Marcello Caetano refere que a protecção concedida ao índio nos séculos XVII e XVIII não se estendia ao negro. Estes são, no entanto, casos pontuais. De um ponto de vista global, os historiadores mais rigorosos ignoraram a temática abolicionista. Manuel Heleno prometia no seu livro sobre os escravos na Antiguidade e Idade Média, mais dois volumes dedicados às "características e importância do comércio dos negros nos tempos modernos (...) e á escravatura colonial; Correia Lopes tinha em mente completar o seu estudo de 1944 com um outro sobre "Portugal na repressão do trafico negreiro e a abolição da escravatura nas colónias portuguesas". Mas tais trabalhos não viram a luz do dia e, no vazio assim criado, os "práticos da questão colonial" desenvolveram uma historiografia menor que visou apenas tecer uma barreira de justificações contra os ataques políticos e ideológicos de que o país era alvo. Fizeram-no mediante reproduções rápidas, fugazes, acriticas, de medidas legislativas dispersas, sem qualquer enquadramento do abolicionismo no seu contexto relativo. Não pesquisaram novas fontes, não avançaram outras interpretações. O que explica duas das características da teoria histórica que construíram: por um lado essa teoria não entrou na area do debate. As obras centrais dos historiadores ingleses são, por vezes, citadas mas não discutidas criticamente. Por outro lado, nunca se emancipou do quadro de referência do nacionalismo. Daí a absoluta similitude entre os discursos histórico e político sobre o tráfico de escravos. 

 

Nota: o que se transcreveu acima é a parte final do capítulo 2 do artigo de João Pedro Marques, "Uma revisão crítica das teorias sobre a abolição do tráfico de escravos português", in Penélope, nº 14, 1994. O título desse capítulo 2 é "Historiografia da abolição do tráfico de escravos até meados do século XX". É no capítulo seguinte desse artigo (capítulo 3, ponto 3.2) que se analisa a historiografia portuguesa após essa época.