Talidomida: a História sob a jurisdição dos tribunais

10-02-2006 12:24

Os leitores estão certamente a par da lei que obriga os programas escolares a sublinharem os aspectos positivos da história colonial da França, e da polémica que essa medida contra-corrente tem provocado nesse país. Nem todos saberão, porém, que esta situação insólita em que um parlamento se julga habilitado a avaliar a História e a fixar — ou pelo menos a condicionar — o que, a respeito do passado, deve ser dito, já vem de trás e é ainda mais séria do que parece. É conhecida a importância que o pensamento politicamente correcto tem, desde há décadas, nas culturas ocidentais. Ultimamente, porém, essa forma de pensamento começa a adquirir um peso verdadeiramente esmagador porque invade o campo da História e é imposta por lei, criando terrenos minados para os historiadores e, num plano mais amplo, para a própria liberdade de expressão.

No caso francês essa invasão terá começado em 1990 quando, sob o efeito da emoção causada por declarações que contestavam o genocídio hitleriano, o parlamento decidiu que a negação de crimes contra a humanidade passaria a constituir um delito punível nos termos da lei de liberdade de imprensa (expressamente modificada para o efeito). Essa lei, associada a uma interpretação de um artigo do Código Civil segundo a qual certas afirmações são susceptíveis de causar dano à memória que as pessoas têm de acontecimentos passados, criou as condições para condenar por delito de opinião. Condições que se reforçaram, depois, com a aprovação de legislação feita à medida das aspirações de diversos grupos de pressão. Assim, em 2001, o parlamento francês reconheceu o massacre de Arménios em 1915 como um genocídio, e aprovou a lei Taubira, que classifica o sistema escravista desenvolvido pelos europeus a partir do século XV — e apenas o sistema europeu, note-se — como um crime contra a humanidade. Entre outras disposições, a lei Taubira obriga o Estado francês a defender a memória dos escravos e a honra dos seus descendentes.

O historiador — para o qual nenhum terreno deveria ser tabu — fica assim impedido de se pronunciar livremente sobre eventuais mitos já inscritos na memória que certas comunidades têm do seu passado, ou, se o fizer, arrisca-se a sofrer as consequências. Três exemplos bastarão para ilustrar a natureza, a dimensão e o alcance do que está em causa:

1º- Em Novembro de 1993 o historiador inglês Bernard Lewis concedeu uma entrevista ao jornal Le Monde, na qual afirmava não existirem provas sérias de que o massacre de Arménios, perpetrado pelos Turcos em 1915, tivesse obedecido a uma política de genocídio. Essa classificação seria, segundo Lewis, a versão arménia desses acontecimentos. O teor da entrevista indignou o Forum des Associations Arméniènnes de France, que decidiu processar o historiador. Em Junho de 1995 Lewis foi condenado em Paris por ter ousado pronunciar-se em termos alegadamente incorrectos sobre o referido massacre.

2º- Em Dezembro de 2004, no contexto das celebrações do bicentenário de Napoleão, o historiador Max Gallo foi entrevistado pelo canal televisivo France 3. Sendo-lhe perguntado por que razão quando se fala de Napoleão nunca se evoca a sua decisão de restabelecer a escravatura — um “crime contra a humanidade” —, Gallo respondeu que ele próprio já o evocara várias vezes. Ainda assim, deixou transparecer algumas dúvidas sobre a forma correcta de conceber a restauração da escravatura — “est-ce que c’est un crime contre l’humanité? Peut-être, je ne sais pas...” — e sublinhou que o mais importante era perceber a figura de Napoleão em toda a sua complexidade e ambiguidade. Estas declarações geraram tamanha reacção que o canal televisivo se demarcou prontamente de Gallo. Alguns dias depois o historiador retratou-se publicamente, apresentando as suas desculpas e reconhecendo que a escravatura era um crime contra a humanidade, “qui doit être condamné rétrospectivement”.

 3º- Em Junho de 2005, na sequência da publicação do seu livro Les traites négrières, vencedor de três prémios da academia francesa, o historiador Olivier Pétré-Grenouilleau concedeu uma entrevista ao Journal du Dimanche na qual afirmou que não fazia qualquer sentido classificar o tráfico negreiro como genocídio (pois o objectivo não era matar os escravos). Referiu, também, que antes do tráfico para as Américas tinham existido outras formas de comércio de negros — o que, como vimos, a lei Taubira ignora — e considerou que aqueles que se dizem descendentes de escravos o fazem por opção ideológica, visto que tendo a escravidão sido abolida em meados do século XIX, qualquer das pessoas que actualmente se reivindica como tal é, também, descendente de gente livre. Pétré-Grenouilleau foi imediatamente sujeito a uma torrente de insultos e de ameaças, e alvo de queixas penais por parte de organizações que representam os franceses de origem africana.

No momento em que escrevo estas linhas não sei qual será o desfecho do caso Pétré-Grenouilleau. Mas seja ele qual for, é manifesto que os historiadores enfrentam um problema sério até porque esta mania condenatória, particularmente virulenta em França, tende a propagar-se por via política a todos os países da comunidade europeia, incluindo, obviamente, Portugal. Se a Europa já reconheceu a Shoah como crime contra a humanidade, se já classificou como genocídio o massacre de Arménios em 1915, como poderá deixar de fazer outro tanto a respeito do tráfico transatlântico e de outras desumanidades e tragédias? Uma vez que a principal preocupação do politicamente correcto é a de seguir a corrente, este tipo de resoluções condenatórias tenderá a disparar em todas as direcções, tanto à esquerda como à direita, e, passo a passo, o grande terreno do passado ficará balizado por marcos com carga jurídica impeditivos de qualquer interpretação que escape ao legalmente admitido. Há alguns dias assisti à forte indignação do PCP perante a aprovação, pelo Conselho da Europa, de uma resolução condenando os crimes praticados pelos regimes comunistas. Compreendo a irritação dos homens do PCP, ainda que não deixe de ser irónico ver como reagem quando são forçados a provar da sua própria medicina. Mas, deixando a ironia de lado, a medicina a que me refiro — isto é, a introdução da lei e do tribunal no campo da História — é uma espécie de Talidomida que deformará tudo o que esse ventre gerar[1].

No caso de Bernard Lewis, por exemplo, o tribunal considerou que o historiador tinha plena liberdade para expor os factos, mas condenou-o por não os ter exposto na íntegra. Aos olhos do tribunal, o historiador deve, como qualquer pessoa, dizer a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade, o que, segundo o acórdão proferido, Lewis não fizera. Pelo contrário, ocultara elementos que poderiam fundamentar uma opinião contrária, e pronunciara-se sem nuances sobre um assunto susceptível de reavivar a dor da comunidade arménia. É certo que Lewis não negara a matança; todavia não a classificara como genocídio, o que na óptica do tribunal era motivo de condenação.

Mas a aberração não se resume à sentença. Entre as provas susceptíveis de contrariar a interpretação de Lewis, o tribunal considerou uma declaração de 1985 de uma sub-comissão da ONU e uma resolução de 1987 do Parlamento Europeu. Ou seja, parte da prova histórica usada contra Lewis — e aceite pelo tribunal — seria a opinião que organismos internacionais têm actualmente sobre o assunto, o que constitui um círculo vicioso, pois esses organismos limitam-se muitas vezes a ecoar a opinião dos grupos de pressão e a jogar o jogo do politicamente correcto. Nenhum estudioso de acontecimentos ocorridos no início do século XX se lembraria de recorrer à ONU pela simples razão de que esse organismo não é uma fonte do conhecimento histórico. Recorreria, isso sim, a documentos da época estudada, depois de os ter passado pelo crivo da crítica documental. O que a ONU actualmente diz sobre um assunto ocorrido há 90 anos não é relevante para o historiador (a menos, claro está, que esse historiador se interesse pela história da própria ONU). Mas compreende-se que as coisas sejam diferentes para um tribunal, que — suponho eu — joga com outros conceitos de prova e de avaliação. Chamados a debater e a tomar decisões numa área cujas práticas e subtilezas presumivelmente ignoram, os juristas impõem-lhe lógicas que a desvirtuam.

O risco que esta confusão de planos envolve para o historiador é óbvio. De facto, fará sentido pedir-lhe que diga toda a verdade e nada mais do que a verdade? Os historiadores não são relatores que devam fazer a transcrição integral e absolutamente imparcial do passado, dando a todos os intervenientes igual tempo de antena. São pessoas que através do estudo adquiriram familiaridade com um determinado período ou problemática do nosso passado e que, enquanto peritos, nos dão a sua visão desse passado. Todos os historiadores têm inclinações ideológicas. Mas isso nada tem de mal. O que os valoriza não é a circunstância de serem de esquerda ou de direita, mas sim a competência, a inteligência, a profundidade e justeza das suas análises. Essas análises devem ser debatidas e escrutinadas mas não devem ser criminalizadas. A História não se faz com a lei mas com documentos e bons argumentos. E falo em documentos, num enorme plural, porque também não é com um documento isolado que se escreve a História. Essa tarefa exige anos de estudo e a combinação de uma multiplicidade de fontes e de conceitos. A História é um conhecimento de acumulação: “il faut du temps pour étudier le temps”.

Estarão os tribunais — e, a montante deles, os parlamentos — bem cientes disto? Aparentemente, não estão. A perspectiva dominante pressupõe que o cerne da História reside nos factos. Por isso, o proponente da resolução que condena os crimes praticados pelos regimes comunistas, manifestou a esperança de que, no futuro, os historiadores aprofundem a investigação nessa área de forma a estabelecer objectivamente o desenrolar dos factos. Por outras palavras, a interpretação já está feita; caberá aos historiadores rechearem o empadão com mais factos. Ora, a História não é uma mera colecção de factos. O que de mais valioso nos pode dar situa-se menos na descoberta factual do que na revolução hermenêutica, isto é, não radica no plano dos factos mas no das interpretações. Quando se elabora uma lei que impõe uma determinada interpretação e um quadro conceptual, paralisa-se o historiador e mata-se a História.

Permitam-me ficcionar a partir de um acontecimento próximo de nós. A figura de Vasco da Gama tem um peso enorme no imaginário português (e não só). Mas todos sabemos que uma vez fechado o capítulo da descoberta do caminho marítimo para a Índia, essa figura se esfuma nos compêndios escolares e na nossa memória colectiva. Poucos portugueses saberão que Vasco da Gama regressou à Índia envolto em tonalidades mais sombrias. Efectivamente, no decurso da sua segunda viagem Gama capturou uma nau com peregrinos que regressavam de Meca e mandou incendiá-la, assim matando cerca de 250 pessoas (sobretudo mulheres e crianças). Estranho comportamento da parte do descobridor que abriu novas rotas ao mundo? Talvez não. O espírito de cruzada anti-muçulmana tinha enorme importância na época e Gama era um homem agressivo. No dizer de Sanjay Subrahmanyam, um dos seus biógrafos, seria mesmo uma figura cruel e paranóica, um perfeito reflexo da fidalguia violenta e pouco escrupulosa a que pertencia.

Por ocasião das comemorações do quinto centenário da chegada de Gama à Índia, a Comissão dos Descobrimentos convidou Subrahmanyam para proferir uma conferência na Sociedade de Geografia, o que originou manifestações de desagrado por parte de sectores mais ciosos da boa reputação dos heróis lusos. A conferência foi, ainda assim, por diante. Mas, suponham que existia em Portugal um quadro legal à la française destinado a preservar a memória que a generalidade dos portugueses conserva de Gama e desses tempos recuados. Suponham que aqueles portugueses que se sentiram ofendidos por Subrahmanyam decidiam processá-lo, ao abrigo dessa legislação. Suponham, ainda, que, na Índia, a legislação local considerava Gama como um criminoso de guerra e previa penas para o historiador que não o referisse nessa qualidade.

É este horizonte de endeusamentos e demonizações que exigimos da História ou queremos que ela nos enriqueça com um cruzamento de visões plurais devidamente fundamentadas? Pela minha parte não tenho dúvidas de que é na área da fundamentação e do cruzamento de diversas perspectivas que se joga e se afirma a validade histórica, não nos tribunais. No caso acima referido, caberia aos que discordavam de Bernard Lewis mostrar, com documentos e argumentos credíveis, que o massacre de 1915 obedecera a um propósito de genocídio. E admitir, de antemão — porque é essa a regra da História — que a sua perspectiva poderia vir a ser posta em causa por novas investigações ainda mais fundamentadas e profundas. Agir de outro modo, como se agiu, corresponde a uma derrota do pensamento.

Pelo andar das coisas arriscamo-nos a ir de derrota em derrota até à derrota final. Nesse cenário melancólico que poderá o historiador fazer? Pode, como qualquer cidadão livre, insurgir-se contra estas leis atentatórias do direito de liberdade de expressão, mais próprias de regimes totalitários do que de democracias. Pode, também, usar as armas específicas do seu saber para impedir que visões maniqueístas tenham livre curso na opinião pública e entre os que fazem as leis que nos regem. Pode, por fim — e sobretudo —, remar contra o anacronismo, esse erro que consiste em pensar que as pessoas no passado eram exactamente como nós, sem levar em linha de conta o tempo, as culturas e os lugares em que viveram.

Esta obrigação de lutar contra o anacronismo bastaria por si só para provar a absoluta incompatibilidade entre o trabalho do historiador e as leis de condenação retrospectiva que têm emanado dos parlamentos. Aqui está, na sua expressão mais clara, a Talidomida a que me referia. O historiador pode afirmar que, se ocorresse nos nossos dias, o tráfico negreiro seria um crime contra a humanidade. Mas, por dever de ofício e por honestidade intelectual terá de dizer que no século XVII o não era porque nenhuma nação, nessa época, o concebia como tal. E, ao dizê-lo, cairá imediatamente sob a alçada de todas as leis Taubira já aprovadas e a aprovar.

A incompatibilidade é gritante. Não seria altura de os parlamentares perceberem que não lhes cabe legislar sobre o passado, para o qual já legislaram outros homens, noutros tempos? Não seria altura de perceberem que até o politicamente correcto tem um limiar de racionalidade e bom senso que não convém ultrapassar? - João Pedro Marques (publicado inicialmente in Atlântico nº 13, Abril de 2006)


[1] - Talidomida é o nome de um mediamento utilizado pela primeira vez na década de 1950 para controlar a ansiedade e outros transtornos próprios da gravidez. O fármaco seria retirado do mercado depois de milhares de crianças terem nascido com malformações.