O emancipacionista Sá da Bandeira

25-10-2018 07:57

A história da abolição da escravatura em Portugal tem um nome — Sá da Bandeira — e vários mal-entendidos. Um desses mal-entendidos é a ideia de que Portugal teria sido o primeiro país a abolir a escravatura. Essa é uma daquelas verdades que nos engana. É certo que o marquês de Pombal ilegalizou muito precocemente o tráfico (1761) e a escravidão (1773), mas essas medidas aplicavam-se apenas ao território metropolitano e não tiveram continuidade imediata. O tráfico marítimo de escravos só viria a ser totalmente proibido nas colónias portuguesas em 1836, e a escravidão só foi ilegalizada, num processo legislativo muito gradual, entre 1854 e 1875. Um outro mal-entendido, que muitas vezes se repete, em tom de censura, é o de que os portugueses teriam sido os últimos a interditar a escravatura. Não é verdade. Portugal aboliu-a antes da Espanha (1880), do Brasil (1888), de vários estados muçulmanos — a Arábia Saudita, por exemplo, só a aboliu em 1962 — e de muitos outros países.

Dito isto, a pergunta subsiste: porque é que Portugal teve um caminho abolicionista atribulado e lento? Seriam os portugueses de então maioritariamente escravistas? A análise de jornais, discursos parlamentares e outros documentos da época mostra que não. Mas também revela que, em Portugal, havia poucos abolicionistas, isto é, poucas pessoas que, à semelhança de Sá da Bandeira, pugnassem pelo fim imediato do comércio negreiro e, a breve prazo, da própria escravidão. Regra geral, os portugueses das classes dirigentes e letradas lamentavam as injustiças feitas aos africanos e admitiam a abolição gradual do sistema escravista, desde que isso não lesasse os interesses nacionais. E esse era o nó górdio de toda a questão. Enquanto que em Inglaterra se criara a convicção de que a supressão do tráfico e da escravidão era a política nacional apropriada, em Portugal temia-se geralmente que ela equivalesse à perda das colónias. Por isso, apesar de considerarem a escravatura imoral e injusta, muitos portugueses, tal como os franceses e espanhóis, estavam dispostos a tolerá-la — eram toleracionistas — e só devagar e a custo se moveram no sentido da abolição. Quando o fizeram foram impelidos pela pressão britânica, pelas iniciativas abolicionistas de Sá da Bandeira, e, a partir de 1840, pela convicção de que a continuidade do tráfico e da escravidão punha seriamente em causa a honra nacional.

A pressão britânica foi importantíssima no que toca à abolição do tráfico transatlântico de escravos. Portugal foi o primeiro país a assumir oficialmente, logo em 1810, o compromisso de cooperar com a Grã-Bretanha no combate ao tráfico. Contudo, nada fez nesse sentido, pois interessava-lhe preservar o fluxo de mão-de-obra para o Brasil. Em 1815, e sempre por pressão inglesa, proibiu o tráfico no hemisfério norte, apenas, e continuou num registo inoperante, que manteve mesmo após a independência do Brasil. Só no final de 1836, passadas as turbulências relacionadas com a revolução de 1820 e com a guerra civil, se publicou um decreto de Sá da Bandeira proibindo a exportação de escravos de qualquer parte do território português. Porém, como Sá se recusou a assinar um tratado com a Grã-Bretanha para a efectiva supressão naval do tráfico e como, em Lisboa, havia grande receio de aplicar o decreto, ele permaneceu letra morta. Face a isso, em 1839, o governo britânico endureceu a sua posição e fez aprovar uma lei, o Palmerston’s Act, que dava à Royal Navy poderes para apresar navios negreiros com bandeira portuguesa (ou sem bandeira), tivessem ou não escravos a bordo. A lei inglesa foi levada à prática e provocou, em Portugal, uma exaltação semelhante à que seria causada, em 1890, pelo Ultimato, com apelos à guerra e à retaliação, apelos que os governos de Lisboa tiveram o bom senso de não seguir. Mas o abalo nos brios nacionais tinha sido imenso e a partir de então Portugal começou a cooperar de boa-fé com a Grã-Bretanha, assinando o requerido tratado (1842) e desencadeando uma acção anti-tráfico em resultado da qual a Armada portuguesa apresou ou destruiu mais de 120 embarcações negreiras.

O Palmerston’s Act fez entrar em jogo a honra nacional, um novo factor que cortou o no górdio toleracionista. Pela primeira vez o país sentia que, a par das razões de natureza humanitarista havia um forte motivo político — a defesa do bom nome do país — para se empenhar a sério e sem sofismas na luta contra o tráfico. Essa luta passou a ser de interesse nacional. Em meados do século XIX, qualquer nação que quisesse ser aceite no concerto das nações civilizadas tinha de demonstrar que lutava activamente contra a escravatura. Foi esse o principal motor da acção anti-escravista portuguesa, e não qualquer força económica pois em Portugal, nessa época, não havia um número suficiente de pessoas dispostas a investir capitais em África ou a emigrar para lá.

A defesa da honra nacional também pesou no processo que levou à abolição da escravidão, mas em menor grau porque nesse âmbito não havia uma pressão externa do mesmo calibre. O tráfico transatlântico de escravos constituía um problema internacional que implicava a travessia do oceano e envolvia nações da Europa, África e América. Ao invés, a escravidão era, por norma, um assunto que se passava exclusivamente no interior de um Estado independente e soberano. Acresce que, no que dizia respeito ao comércio negreiro, Portugal se obrigara por uma série de acordos bilaterais. Ora, nenhum acordo existia relativamente à questão da escravidão, a não ser um compromisso moral, tacitamente aceite por todas as nações que se queriam progressistas.

E foi nessa tecla que Sá da Bandeira, o principal impulsionador das medidas emancipacionistas, tocou repetidamente. Cada nova emancipação — inglesa, dinamarquesa, francesa, etc. — era pretexto para Sá trazer o assunto para a ordem do dia, tentando estimular os portugueses a seguirem o exemplo do que se fazia no exterior. Nem sempre o conseguiu. Sá fez a primeira proposta de lei para acabar com a escravidão nas colónias portuguesas em Março de 1836, na sequência da lei de emancipação inglesa, mas o processo só viria a concluir-se quase quarenta anos depois. Porquê? Porque o abolicionismo continuava a ser débil, muito minoritário, no país, e porque a emancipação dos escravos implicava uma indemnização aos seus senhores que andaria pela então exorbitante quantia de 3 a 4 mil contos. Em Portugal não havia dinheiro nem vontade política para fazer esse dispêndio. Assim, na década de 1850, para ultrapassar esses bloqueios, Sá optou por uma política gradual que ele mesmo classificou de “actos progressivos”, e que seguia duas vias: por um lado, avançava com as chamadas “leis do ventre livre”, que libertavam os filhos das escravas nascidos após a publicação da lei, mas obrigando-os a trabalhar para os seus senhores até atingirem uma determinada idade; por outro lado, ia a pouco e pouco convertendo os escravos já existentes em libertos que ficavam obrigados a trabalhar por mais 7 ou 10 anos. Em 1869, todos os escravos ainda existentes passaram por decreto de Sá da Bandeira a libertos e, em 1875, cessou definitivamente a condição de liberto. Passo a passo, Sá conseguiu abolir a escravidão nas colónias portuguesas.

O que não significa que os antigos escravos tenham ficado completamente livres. O processo português fora tão arrastado no tempo que o horizonte, entretanto, mudara. Quando Portugal terminou o processo abolicionista já havia um refluxo das ideias libertadoras. Os abolicionistas britânicos haviam assegurado, durante a campanha anti-escravista no primeiro terço do século, que um trabalhador livre produziria mais e mais barato que um escravo. Ora não foi isso que se verificou quando a Grã-Bretanha libertou os seus escravos, na década de 1830. Em várias colónias os ex-escravos esquivavam-se ao trabalho nas plantações, ou só o faziam por salários compensadores. Em consequência, a produção caía e os plantadores arruinavam-se. Daí que se tenha formado entre as elites políticas europeias um quase consenso a respeito da emancipação. A escravidão devia terminar, sim, mas era necessário estabelecer uma tutela do africano e forçá-lo a trabalhar.

Perante esse consenso Sá da Bandeira teve de converter os seus sonhos iniciais num programa mais modesto. O seu decreto de 1869 ainda não previa qualquer regulamentação do trabalho, mas o mesmo já não acontecia na lei de 1875. Sá explicou que o regulamento que aí se previa era uma medida de transição destinada a durar apenas entre 1875 e 1878. Se o serviço forçado dos negros continuasse a ser exigido para lá de 1878, então o alcance de todas as leis aprovadas desde a década de 1850 seria anulado ou pervertido. Ora, foi justamente isso que aconteceu. Sá morreu no início de 1876 e já não assistiu à desvirtuação da sua legislação, mas nas colónias portuguesas em África, à semelhança do que fizeram as outras nações coloniais, a escravidão foi substituída por formas de trabalho forçado.

Envolvido em guerras, revoluções, crises e hesitações toleracionistas, Portugal demorou tempo a abolir a escravatura, mesmo após ter perdido o Brasil. Desde a apresentação às Cortes, em 1826, de um primeiro projecto de lei para pôr fim ao tráfico de escravos, da autoria do deputado Morais Sarmento, até à lei de 1875, decorreu meio século. Esse caminho demorado fez-se, em boa medida, dos esforços de Sá da Bandeira para convencer a classe política de que era necessário seguir os rumos do progresso. É importante notar que nesse meio século não houve qualquer revolta ou acto de resistência escrava que pudesse ter apressado o processo abolicionista. A abolição, em Portugal, como na generalidade dos outros países, foi decidida nos gabinetes governamentais e nas cadeiras do parlamento. Foi uma reforma de cima para baixo. No caso português, como em quase todos os outros, é completamente errada a ideia de que o fim da escravidão teria resultado da luta dos escravos pela liberdade.

Sá da Bandeira deixou estipulações para o seu enterro. Queria jazer em campa rasa na qual devia ficar gravada a seguinte inscrição: “Servindo o seu país, serviu as suas convicções; morre satisfeito, a pátria nada lhe deve”. Mas a pátria sentiu, e bem, que lhe devia muita coisa. Ergueu-lhe uma estátua em Lisboa, outra em Santarém — onde nascera — e deu o seu nome a ruas, praças, teatros. Isso, porém, foi num outro tempo. Agora que a questão da escravatura tem sido agitada, e que se projecta a construção, em Lisboa, de um memorial que visa, entre outras coisas, homenagear os que se bateram pela liberdade dos africanos, talvez seja importante lembrar que Sá da Bandeira, o homem que lutou persistentemente e muitas vezes quase sozinho, ao longo de quatro décadas, para ilegalizar a escravatura e o chamado “serviço de carregadores” — que era uma forma de trabalho forçado praticada em Angola —, merece por direito próprio e por elementar respeito pela verdade histórica figurar em lugar de destaque nesse memorial - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Visão História, nº 49, Outubro de 2018).