Reparações. Vem aí uma operação de charme
O Reino Unido acaba de receber uma delegação da Caricom Reparations Comission composta por seis membros e liderada por Hilary Beckles. Trata-se de um historiador e activista, natural de Barbados, que tem umas teses completamente tendenciosas sobre a escravatura e a sua abolição, e que foi um dos historiadores que, em 2010, critiquei duramente — e que também me criticou a mim — neste livro (ver link no primeiro comentário) . Somos, por isso, velhos conhecidos. Eu li o que ele foi escrevendo ao longo do tempo e sei muito bem o que pretende, quer como académico quer como político e activista. Durante anos e anos, desde a Conferência Mundial Contra o Racismo, realizada em Durban, em 2001, que Beckles e outras pessoas das Caraíbas têm ameaçado o Ocidente com processos e tribunais para tentar obter avultadíssimos montantes a que ele e os seus colegas chamam reparações pelo tráfico transatlântico de escravos e pela escravidão colonial.
Como essas ameaças não resultaram, vieram agora à Europa numa visita de charme com vista a estabelecer parcerias estratégicas, despertar — isto é, agitar — a opinião pública e tentar fazer aliados entre parlamentares, académicos e outros “progressistas” britânicos. Acenam, sedutoramente, com um desejo de entendimento para que se chegue “a estratégias recíprocas que conduzam a benefícios mútuos”, ou seja, dizem querer que se estabeleça um programa de interesse comum que permita resolver de uma vez por todas aquilo que designam por “problemas e trapalhadas deixados pelo colonialismo”.
Ao mesmo tempo que, em Londres, esta delegação pressiona e tenta seduzir, espalha-se pelo mundo ocidental uma teoria ainda mais culpabilizante sobre os malefícios do homem branco europeu. Dizem os activistas que o aquecimento global começou com a revolução industrial britânica, revolução essa que só terá sido possível graças aos lucros que provinham do sistema escravista. Ou seja, a culpa que projectam sobre nós desdobra-se e multiplica-se.
Keir Starmer tinha, tal como o seu antecessor Rishi Sunak, recusado o pagamento de reparações e há múltiplas razões para continuar a fazê-lo. Veremos o que vai acontecer. Similarmente, os nossos governantes em Lisboa também deverão recusá-lo, pelas razões que procurei mostrar em vários artigos. Há, até, uma espécie de pré-razão ou de razão preliminar. Efectivamente, os que exigem reparações fundamentam essa sua exigência no facto de, entre os séculos XVI e XIX, 12,5 milhões de africanos terem sido, segundo afirmam, raptados, transportados à força para as Américas e vendidos como escravos. O problema desta descrição dos factos, que não contesto e que fundamenta toda a subsequente exigência de reparações dos activistas que vêm bater à porta da Europa, é que não foram os europeus que raptaram os africanos e que primeiramente os venderam como escravos. Foram os próprios africanos que o fizeram. Eu vou dar um exemplo para que toda a gente possa visualizar e perceber. Enquanto o tráfico transatlântico de escravos durou, e mesmo em períodos de grande intensidade como sucedeu, por exemplo, no século XVIII, Portugal não teve qualquer contacto directo com o reino da Lunda, que grosso modo correspondia territorialmente ao nordeste da actual Angola. Sucede que parte dos escravos que chegavam a Luanda e eram, depois, embarcados para o Brasil, vinham daí. Não eram as distantes autoridades portuguesas que forçavam a Lunda a capturar gente, pela guerra, pelo rapto e por outros métodos. Eram as próprias autoridades locais que desejavam fazê-lo para, por essa via, poderem aceder a produtos e bens ocidentais que iam, de mão em mão, de permuta em permuta, chegando ao interior.
Sendo esses os factos históricos, cabe perguntar: quererá o actual estado angolano assumir a responsabilidade política e financeira pelo que foi feito no século XVIII na Lunda? Enquanto se aguarda por uma eventual resposta a esta pergunta, há que reafirmar que não pode aceitar-se que os activistas das Caraíbas (e de outras partes) venham bater às portas de França, do Reino Unido, de Portugal, de Espanha, da Dinamarca, da Holanda e de alguns estados americanos, sem irem bater igualmente às dos estados africanos como Angola, Nigéria e muitos outros que, no passado, permitiram ou incentivaram que se capturassem e escravizassem pessoas para as enviar para as costas de África e para os porões e cobertas dos navios dos homens brancos.
E há que acrescentar de novo, e ainda no campo das razões preliminares, que não pode aceitar-se que se exija aos países europeus e americanos aquilo que não se exige aos países árabes e muçulmanos. Desde o século VII que o mundo islâmico adquiriu, de forma violenta ou por meio do comércio, milhões de escravos negros vindos da África subsariana. É muito provável que, no total, tenham sido 17 milhões de escravos negros, se se contabilizarem os que foram para a Índia. Como diz Justin Marozzi, o autor de Captives and Companions: A History of Slavery and the Slave Trade in the Islamic World, o mais recente livro sobre a escravatura no mundo islâmico, “qualquer conversa sobre reparações que não inclua os países árabes e a Turquia é desonesta”.
Portugal não deve ir em conversas de reparações, sejam elas honestas ou desonestas. É preciso que isso e tudo o que escrevi atrás fique claríssimo na cabeça das pessoas. E que fique igualmente claro que quem reivindica reparações quer jogar com vagos sentimentos de culpa que resmas de académicos andaram a injectar e a adubar nas cabeças dos seus alunos. As ondas de choque desta missão de charme dos activistas das Caraíbas a Londres virão quase de certeza bater-nos às portas, e primeiramente às do Ministério dos Negócios Estrangeiros, do governo e do obviamente receptivo inquilino do Palácio de Belém. É importante que nenhum deles se deixe ir na corrente por várias razões de que destaco duas: porque é absurdo fazê-lo e porque isso iria frontalmente contra a vontade da maioria do povo português. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 22 de Novembro de 2025).