Reparações? O abuso de uma velha ideia
Foi há poucos dias que o Daily Telegraph deu a notícia: o governo britânico, actualmente nas mãos dos trabalhistas, terá, em Abril próximo, um encontro de trabalho com representantes da Caricom (Comunidade das Caraíbas) para avançar no sentido das reparações pelo tráfico de escravos e a escravidão. O governo britânico negou essa notícia, mas não a esclareceu cabalmente. Será verdade? Ficamos na dúvida e teremos de esperar por Abril para saber se algo se estará a cozinhar nesta matéria.
Aqui no nosso jardim à beira-mar plantado de louros e de acácias olorosas, uma dezena de militantes woke reune-se dentro de dias no Museu de História Natural e da Ciência para dar vida ao colóquio “Colonialismo e Reparações. Para Onde Caminhar?”. Vou seguir o evento com atenção porque o wokismo está ferido de morte, mas, no seu estertor, ainda pode causar dano. Sobretudo por ser simultaneamente ignorante e militante, e há poucas coisas mais perigosas do que a ignorância atrevida. De facto, várias facetas caracterizam o wokismo. Uma delas é o simplismo histórico, o que equivale a (e decorre da) falta de saber. Outra é a profunda convicção de que só os woke se preocupam com a justiça social. Em resultado de ambas as coisas vem o auto-convencimento de que terão sido eles que trouxeram a questão das reparações para cima da mesa e que ela é exactamente assim como a apresentam.
Como é costume estão redondamente enganados. O assunto das reparações foi profusamente tratado por teólogos e juristas, nomeadamente pelos teo-juristas ibéricos de Quinhentos (Fernão Pérez, Luis de Molina, entre vários outros) e dos séculos seguintes. Com ligeiras variações, o raciocínio central era o seguinte:
A escravidão e o tráfico de escravos a ela inerente seriam admissíveis e justos por quatro razões: por nascimento — os filhos de uma mulher escrava herdavam a condição da mãe —; por venda de si próprio ou dos seus em caso de extrema necessidade; como forma de punição por crimes graves; e como resultado de uma guerra justa. Como o padre Manuel Ribeiro da Rocha escreveu em 1758, no seu Ethiope resgatado, a sorte dos escravos seria amarga, mas não poderia dizer-se que fosse injusta “porque em tais circunstâncias, justos são, por direito natural e das gentes, estes títulos para a escravidão se contrair”. Contudo, o bom cristão não podia fechar os olhos à realidade nem bloquear a consciência, e Ribeiro da Rocha considerava, tal como os teo-juristas ibéricos do século XVI já haviam considerado, que as condições em que os escravos se obtinham em África não eram geralmente as legítimas mas, bem ao invés, as do rapto e do roubo. Os captores dos escravos seriam puros piratas e, consequentemente, toda a negociação com homens dessa laia punha sérios problemas de consciência. Qualquer cristão que comprasse cativos sem prévia averiguação das circunstâncias do seu cativeiro, estava em grande risco de pecar. Claro que os problemas só se colocariam aos que conhecessem as condições eventualmente ilegítimas em que os escravos tinham sido obtidos. Aqueles que as ignorassem poderiam comprar e reter esses escravos sem qualquer receio porque a ignorância os fazia possuidores de boa-fé. Mas as almas de todos os outros estavam seriamente ameaçadas: os negreiros que iam à Costa de África andavam em estado de Eterna Condenação; as outras pessoas que, posteriormente, adquirissem os escravos para o seu serviço, estavam obrigadas a fazer reparações, isto é, a restituir a liberdade aos indevidamente escravizados, com os proventos que os cativos poderiam entretanto ter obtido se estivessem livres e com a restituição dos serviços que tivessem feito enquanto em escravidão.
Manuel Ribeiro da Rocha propunha um modo de actuação que permitiria simultaneamente ultrapassar o risco de pecado e manter o sistema escravista a funcionar. Não interessa abordar aqui detalhadamente essa proposta do padre setecentista. O que interessa, isso sim, é sublinhar três coisas. Em primeiro lugar que a eventual reparação seria devida aos próprios escravos e não a distantes descendentes ou a meros irmãos de raça. Em segundo lugar que, sendo a escravatura uma prática legal, a pena que impendia sobre quem a praticasse de forma ilegítima e de má-fé, era uma pena espiritual e religiosa que remetia acima de tudo para o conceito de pecado e para as esferas da consciência e da salvação da alma. Em terceiro lugar que essa pena e a obrigação de proceder a reparações (pela restituição de serviços e da liberdade, e pelo pagamento do que o escravo ficara impedido de auferir, sendo um trabalhador livre) eram entendidas a nivel individual e vistas caso a caso. Nunca os teólogos e juristas da Idade Moderna consideraram que essas fossem obrigações dos Estados nacionais, mas sim uma responsabilidade e eventual encargo de todo o bom cristão que se visse, de algum modo, ligado ao tráfico negreiro e à utilização de escravos africanos. Ao promoverem o escorregamento da culpa individual no sentido da culpa nacional e da responsabilidade dos Estados, os reparacionistas woke contemporâneos pervertem, sem qualquer nova fundamentação, as intenções dos que pensaram a questão das reparações nos séculos XVI-XVIII, e querem obrigar-nos a todos nós, mesmo os que descendemos de gente que nunca traficou ou possuiu escravos, a pagar, como cidadãos de um Estado, por via fiscal ou outra, uma factura global. Por outras palavras, querem que pague o justo pelo pecador. E essa é mais uma razão para que a ideia de reparações que agora nos apresentam seja frontalmente rejeitada.
É verdade que foi o Estado que assumiu de moto proprio parte do encargo da reparação ao decretar, no século XIX, a emancipação de todos os escravos. Fê-lo quando a fundamentação da escravatura ruiu e quando se generalizou a convicção de que, ao contrário do que até então se pensara, não havia razões justas para a escravização das pessoas. Nem a guerra, nem o nascimento, nem a punição por crimes, nem a venda em caso de extrema necessidade o justificavam. Penalizar agora o Estado português — e todos nós — por a humanidade não ter chegado a essas conclusões 300 ou 400 anos antes é tão absurdo e anacrónico que nem merece comentário. Pôr às costas desse Estado e de todos os seus cidadãos aquilo que seria eventualmente ónus de uma pequena parte deles vai tão contra a lógica e o direito que causa vertigens. É por essa estada vertiginosa que os woke nos querem levar, mas podemos e devemos recusar firmemente uma tal viagem. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 17 de Fevereiro de 2025).