Recálculo

24-09-2013 11:52

Se o Tribunal Constitucional não o impedir, o actual governo levará a cabo a revisão da fórmula de cálculo das pensões dos ex-trabalhadores da função pública, aplicará essa fórmula revista retroactivamente e, através dessa viagem no tempo, actuando como os time bandits do filme homónimo, irá cortar à roda de 10% nas pensões de muita gente.

O principal argumento governativo para actuar assim é, por incrível que pareça, o da justiça. É um argumento imoral e cínico, pois as pensões dos ex-funcionários públicos não foram obtidas através do roubo ou do homicídio, nem por qualquer meio ilegal. Resultaram do trabalho e dos descontos efectuados pelas pessoas, segundo a fórmula que lhes foi imposta pelas leis da República portuguesa. Mas o governo, que põe a tónica no facto de ainda subsistirem desigualdades de retribuições para igual tempo de trabalho entre os sistemas de pensões dos sectores público e privado, não se comove com essas minudências nem se contenta com a convergência gradual entre os dois sistemas — algo que já está em curso desde 2005 — e quer aplicá-la de forma instantânea e imediata, abalando a fé dos acordos e tirando o que já havia sido atribuído.

Isto é uma verdadeira bomba em termos da destruição da confiança, esse ingrediente essencial para o bom funcionamento das sociedades humanas. Se os governos (ou quaisquer outras entidades) puderem olhar para o passado e alterar unilateralmente as regras e os princípios que antes fundamentaram e forjaram uma determinada relação ou obrigação, então tudo será possível em nome dessa suposta justiça retroactiva e a ansiedade instalar-se-á. Será que os meus filhos podem ser obrigados a repetir o secundário porque tiveram o “privilégio” de passar de ano sem realizar exames, o que já não acontece aos alunos de agora? Será que o imposto que paguei quando comprei a minha casa irá ser recalculado? Será que o contrato que estabeleci pode ser anulado ou alterado pelo simples facto de se constatar que há outros menos favoráveis? Será que... Os exemplos de incertezas podiam multiplicar-se indefinidamente porque o mundo está cheio de situações desiguais, algumas das quais decorrem do simples facto de terem ocorrido em momentos diferentes do tempo e ao abrigo das regras então vigentes.

Há, por isso, toda a razão para termos medo. Não propriamente medo de uma espécie de revolução permanente que, fazendo Trotsky empalidecer de inveja, reavaliasse impostos, isenções, retribuições, heranças, privilégios, desde o início da desigualdade e de forma a acabar com ela. Podemos pôr esse receio de parte porque o nosso governo é muito selectivo nas suas escolhas e a sua ânsia de justiça — e, arrisco-me a dizê-lo, as suas imaginação e coragem — não vão tão longe. Na verdade, o que o move é a vontade de ir buscar dinheiro aos mais fracos e acessíveis, para aplacar os poderosos credores que lhe batem à porta. 

O que há verdadeiramente a recear é que as coisas sejam marteladas unicamente de acordo com essa sua vontade. Governantes como Passos Coelho, Poiares Maduro, Hélder Rosalino, já revelaram suficientemente o que pensam e de que forma actuam para não termos quaisquer ilusões a esse respeito. Se o princípio do recálculo pega, se for permitido a quem nos governa redefinir as coisas do passado, então teremos um mundo de arbítrio quase tão aterrador como os que Orwell conseguia imaginar. Amanhã ministros carentes de dinheiro compensarão os seus próprios erros ou satisfarão a premência de pagamentos através de artimanhas e de atropelos deste tipo. Quem os impedirá de recalcular o imposto de circulação de, por exemplo, 2001 (que, unilateralmente, considerarão “errado” ou “demasiado generoso”)? Quem os impedirá de reverter os aumentos dados por Sócrates em 2009, com o argumento de que foram contra-producentes e eleitoralistas? A verdade é que se estes senhores forem deixados em roda-livre, e perante a possibilidade do recálculo, ninguém estará seguro de coisa nenhuma - João Pedro Marques (Publicado pela primeira vez in Jornal i, 24 de Setembro de 2013).