Quem cala consente

14-11-2025 11:29

Celebrou-se há dias o cinquentenário da independência de Angola e, nesse contexto, o presidente angolano fez um discurso que foi transmitido pela televisão. Na parte inicial desse discurso, aos 3 minutos e 23 segundos, João Lourenço disse o seguinte: “Mal tínhamos acabado de vencer o colonialismo português, que nos oprimiu e escravizou durante séculos, tivemos de imediato de enfrentar o regime retrógrado do apartheid (…)”. Adiante, aos 20 minutos, já na parte final do seu discurso, voltou ao assunto para dizer que “são passados 50 anos desde que, como resultado da nossa luta, deixámos para trás 500 anos de colonização, escravatura e humilhação”.

Marcelo Rebelo de Sousa estava sentado em lugar de honra, logo atrás do presidente de Angola, que discursava. As câmeras da televisão não apanharam a sua reacção a essas palavras. Não podemos avaliar, pela expressão corporal, se ficou incomodado ou confortável com aquilo que o seu homólogo angolano afirmou, mas sabemos, isso sim, que não viu necessidade de se pronunciar sobre o assunto, algo que indignou André Ventura. O líder do Chega esperava que o presidente português se tivesse levantado, que virasse as costas ao seu homólogo angolano e que recusasse abraçá-lo. Ventura considerou que a inacção e condescendência de Marcelo nos vexou “a nós todos, humilhando o país”. Deu, por isso, “indicações à liderança da (sua) bancada parlamentar para avançar rapidamente com um voto de condenação, não só às palavras do Presidente da República de Angola, como ao acto objetivo de humilhação, de complacência e de cumplicidade que o Presidente português assumiu com as forças de Angola”.

Eu percebo a indignação de André Ventura, que já está com o acelerador a fundo em competição eleitoral, mas acho que está a ir longe de mais. Não seria apropriado que Marcelo se levantasse do seu lugar, virasse costas ao presidente angolano ou que recusasse o seu cumprimento. Em primeiro lugar porque Marcelo era um convidado de honra que representava Portugal e que era (e é) recebido em Angola como amigo. Em segundo lugar porque deve ter suficiente capacidade de encaixe para ouvir uma ou outra coisa menos simpática para o seu país sobretudo quando essas coisas são substancialmente verdadeiras. De facto, deixando alguns pormenores errados ou imprecisos de lado, é verdade que os portugueses compraram escravos no território da actual Angola durante cerca de três séculos e meio, utilizando-os in loco ou exportando-os para o Brasil e outros destinos transatlânticos, e é também verdade que o colonialismo existiu e teve facetas muito injustas e violentas — ainda que isso não seja toda a verdade e que o colonialismo não se resuma a essa violência. Em terceiro lugar porque João Lourenço tem todo o direito a ter a sua versão dos acontecimentos históricos e de a apresentar aos seus concidadãos num discurso que era essencialmente para consumo interno.

Dito isto, Marcelo devia ter falado sobre o assunto. Não na própria cerimónia, claro, mas logo a seguir porque Portugal também precisa de um discurso para consumo interno e não convém que esse discurso seja o angolano, não por ele ser angolano, mas por ser parcial, muito incompleto — o que em História é quase sinónimo de mentira — e esquemático. É, por exemplo, muito enganador afirmar, como fez o presidente de Angola, que os angolanos foram escravizados pelos portugueses. O que aconteceu, na verdade, foi que os antepassados dos actuais angolanos se escravizaram uns aos outros para, por esse meio, estabelecerem negócio com os portugueses. Para os nossos concidadãos espalhados pelos quatro cantos do mundo, Marcelo Rebelo de Sousa devia ter tido um comentário pedagógico e explicativo. Não precisava de ser uma coisa muito extensa, mas era imprescindível ter-lhes dito que, sendo verdade que durante séculos o principal intercâmbio entre Portugal e aquela parte de África foi o comércio da escravatura, a responsabilidade por esse facto foi partilhada, isto é, o horrível negócio foi montado de comum acordo e para benefício recíproco, entre os traficantes portugueses e os comerciantes e chefes políticos africanos.

Nem poderia, aliás, ter sido de outra maneira num tempo em que a população branca morria frequentemente de febres tropicais (sobretudo malária e febre amarela). É importante que as pessoas tenham noção que, nesse tempo, as possessões portuguesas eram, excepção feita a alguns presídios no interior, apenas certos pontos de fixação na costa, nomeadamente Luanda e Benguela. E deve ficar bem claro para todos os nossos concidadãos que os portugueses e brasileiros — e, em menor escala, os ingleses, franceses e holandeses —, foram, entre os séculos XVI e XIX, grandes negreiros naquela parte do mundo, mas que os africanos foram grandes produtores e vendedores de escravos, num negócio coordenado entre compradores e fornecedores cuja fronteira foi avançando lentamente para o interior do continente, até à Lunda e à nascente do Zambeze.     

Marcelo devia ter frisado isso. Não temos que adoptar envergonhada e penitentemente a versão angolana da história da escravatura. Se há coisas em que forçosamente concordaremos, porque são factos indiscutíveis, há outras em que claramente discordamos e discordaremos, e isso não deve ser escondido ou calado. E sobre o colonialismo Marcelo também deveria ter falado. Isto é, devia ter lamentado as partes brutais e iníquas desse processo — a conquista militar, o trabalho forçado, o racismo, etc. —, mas deveria ter apontado e sublinhado os aspectos positivos que o colonialismo levou a Angola — a indústria, a estrutura viária, a rede escolar, as vacinas, os hospitais, a medicina moderna, a língua, um país unificado, etc. É profundamente errado reduzir a presença portuguesa em Angola — ou qualquer outra parte do mundo — à opressão e à exploração. Ou seja, o nosso presidente da República devia ter feito nesta ocasião o que fez em Abril de 2017, quando visitou a ilha de Gorée, no Senegal, e o confrontaram com o problema da antiga escravatura. Marcelo lamentou a violência e iniquidade de tal prática, mas recordou, também, que Portugal a abolira no território metropolitano, em meados do século XVIII, e acrescentou que, ao fazê-lo, o país começara a avançar em direcção a “um ideal humanista” e a reconhecer o que houvera de injusto e de condenável no “comportamento anterior”. Dessa abolição, frisou Marcelo, deveria agora retirar-se uma “lição de esperança no futuro” e a ideia de que “é preciso continuar a lutar pelos direitos humanos” e contra as formas de escravatura actuais.

Essas suas declarações em Gorée, que aplaudi na altura e que são essencialmente verdadeiras e razoáveis, desencadearam uma verdadeira tempestade de críticas vindas da extrema-esquerda. Terá sido por ter ficado então escaldado e por recear nova onda de críticas que o nosso presidente desta vez não falou? Não sei responder, mas foi pena que não o tenha feito porque quem cala consente e não devia. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 14 de Novembro de 2025).