Qual foi a parte que Fernanda Câncio não compreendeu?
No seu mais recente artigo sobre temas coloniais, motivado, desta vez, pelo excelente discurso de Marcelo Rebelo de Sousa no passado 25 de Abril, Fernanda Câncio volta a classificar como “mito” a ideia de que “Portugal foi pioneiro na abolição da escravatura, em 1761 (altura em que foi abolida a escravatura apenas no território de Portugal metropolitano e mesmo assim não completamente)”. Em simultâneo com o artigo de Câncio, exactamente no mesmo dia e também a propósito do discurso de Marcelo Rebelo de Sousa, o historiador Manuel Loff apresentou igualmente o alvará pombalino de 1761 como uma falsa abolição, algo que também já tinha sido feito por Fernando Rosas e várias outras pessoas da mesma área política e ideológica.
A lei abolicionista de 1761 é, assim, uma espécie de saco de pancada da nossa extrema-esquerda que gosta de a apresentar como uma lenda, um logro, uma falsidade ou ainda pior do que isso. É natural que as pessoas, confrontadas com visões antagónicas, fiquem sem saber o que pensar sobre a dita lei. Por essa razão talvez se justifique avançar mais algumas ideias a esse respeito.
E a primeira coisa que importa dizer é que a visão transmitida pelas pessoas de extrema-esquerda que se têm pronunciado sobre a legislação do Marquês de Pombal está errada desde logo porque essas pessoas não entenderam devidamente o significado da palavra “escravatura” no tempo do Marquês. Têm olhado com olhos e léxico do presente para textos do passado sem usar um descodificador. Ora, esse descodificador existe e é muito simples. O alvará de 1761 aboliu o tráfico de escravos (tráfico esse que no tempo do marquês de Pombal se designava por “tráfico da escravatura” ou simplesmente por “escravatura”). Um outro alvará aboliu, em 1773, o estado de escravidão (que nós, nos tempos actuais, designamos quase universalmente por “escravatura”, e daí a confusão de Fernanda Câncio e de muitas outras pessoas). Ambos os alvarás se aplicavam apenas ao território metropolitano de Portugal e aos arquipélagos da Madeira e dos Açores, então colónias, mas não, ou ainda não, ao resto das possessões portuguesas. De toda a forma os primeiros passos abolicionistas estavam a ser dados e eram precursores. Como escreveu Sá da Bandeira em 1840, “Portugal foi a primeira potência da cristandade que, em colónias suas, aboliu o tráfico da escravatura e a própria escravidão dos negros”.
Isto significa que Portugal foi, sim, um pioneiro ou iniciador do processo que levou à abolição das instituições escravistas, ainda que, depois, tenha sido o antepenúltimo país ocidental — e aqui refiro-me apenas aos países ocidentais — a aboli-las definitivamente, algo que só viria a acontecer na década de 1870. Essa morosidade foi, aliás, muito adequadamente referida e lamentada por Marcelo Rebelo de Sousa quando esteve em Gorée, em 2017, mas essa parte das suas declarações ficou soterrada pela gritaria exaltada da extrema-esquerda.
Qualquer pessoa razoável lamenta a demora na conclusão de um processo de emancipação de escravos e um dos que mais a lamentou foi precisamente Sá da Bandeira, o principal impulsionador dessa emancipação no império português. Mas há que sublinhar que as abolições foram processos atribulados e em ziguezague, efectuados por etapas, com avanços, hesitações e, por vezes, recuos. Fernanda Câncio e outros parecem ter a expectativa irrealista de que tudo poderia ter sido feito instantaneamente com um simples toque de varinha mágica. Não foi assim que as coisas se passaram. Um exemplo bastará para o ilustrar. A França aboliu totalmente a escravidão em 1794, mas, depois, reintroduziu-a nas colónias, em 1802, e só viria a aboli-la, uma segunda vez — e agora definitivamente — em 1848.
Cada país teve o seu processo abolicionista, o seu caminho para a abolição. O caminho português foi lento, penoso e, a determinada altura, ilusório ou frustrante? Foi. Quando Portugal o concluiu, no fim da vida de Sá da Bandeira, iniciava-se a chamada “corrida a África” e já todos os outros países coloniais estavam a retroceder no caminho, rumo a formas mais ou menos explícitas ou disfarçadas de trabalho forçado. Por isso, aqui em Portugal, uma coisa pegou com a outra como se não tivesse havido abolição ou descontinuidade. Mas houve. A existência de práticas generalizadas de trabalho forçado de finais do século XIX a meados do século XX não apaga nem desqualifica o que aconteceu antes.
Às vezes dá vontade de perguntar o que é que Fernanda Câncio e outros radicais de esquerda não entendem nesta história relativamente simples, que está exaustivamente estudada e bem documentada. Quais as partes que ainda não perceberam? Mas seriam, evidentemente, perguntas inúteis e perdas de tempo porque essas pessoas não querem saber nem compreender. Estão entrincheiradas na ideologia e de lá não saem. É verdade que lamentam frequentemente, como Fernanda Câncio faz, que “os factos estudados por historiadores e investigadores académicos” passem pouco para a opinião pública e para os manuais do ensino básico e secundário. Mas trata-se de um lamento selectivo pois da Academia só lhes interessam as coisas que vêm chover no molhado e que vão de encontro às suas crenças. Daí que resistam tenazmente às explicações que escapam a esse espartilho, por mais bem estruturadas e fundamentadas que estejam, e que persistam nas sua visões pela rama e nos seus mal-entendidos.
Essas são, porém, contas de outro rosário. O que mais importa sublinhar no contexto do que aqui abordo é que, no que diz respeito à abolição, Portugal foi pioneiro e foi retardatário. Ambas as coisas são verdadeiras. É isto que deve ser explicado a quem quiser verdadeiramente saber o que se passou porque é isso que corresponde aos factos documentados e porque a História não é feita para julgar e condenar, mas sim para compreender processos. Ora as abolições foram processos longos e quando tentamos ordená-las, situá-las no tempo, muito depende de onde decidimos fixar o nosso olhar. O ideal é uma visão global, abrangente, mas há quem se foque apenas no início ou na conclusão desse processo, apagando tudo o resto, o que deforma e deturpa substancialmente as coisas. A direita no tempo do Estado Novo só tinha olhos para o início do processo pois isso conferia primazia ao país. Os actuais radicais de esquerda fixam-se apenas na sua conclusão porque isso lhes permite sublinhar o atraso português, a sua demora, o posicionamento nos últimos lugares da fila. Que forma pobre — paupérrima — de olhar para a História! - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez em Observador, 1 de Maio de 2021).