Políticos e historiadores

12-01-2007 12:37

Nas Opinions de Jérome Coignard, Anatole France narra uma edificante história passada na Pérsia. Um belo dia, o Xá ordenou aos letrados que escrevessem a história da humanidade, para que, de posse desse importante conhecimento, ele pudesse governar melhor. Os letrados meteram de imediato mãos à obra e após aturadas investigações, escreveram 500 volumes que transportaram, no dorso de 12 camelos, até ao palácio real. Porém, o Xá exigiu uma versão mais curta da desejada história da
humanidade. O vai-vem repetiu-se várias vezes ao sabor dos inconstantes humores do Xá até que os letrados, num esforço supremo, conseguiram encafuar a história da humanidade num único volume, que carregaram sobre um burro e transportaram até ao palácio. Mas, muitos anos se tinham já passado desde a ordem inicial e o monarca encontrava-se, agora, moribundo. Contemplando o volume que já não teria forças nem tempo para ler, lamentou, então, a sua sorte: iria morrer sem saber a história da
humanidade. “Senhor” — disse então um dos letrados — “eu posso resumi-la em poucas palavras: os homens nascem, sofrem e morrem”.

Vem isto a propósito de um manual de história concebido e produzido, em partes iguais, por franceses e alemães. Efectivamente, em 2003, o Presidente Chirac e o Chanceler Schröder, apostados em reforçar a aproximação política dos respectivos países, decidiram promover a elaboração de manuais comuns que pudessem ser adoptados no ensino da história no secundário francês e alemão. No ano seguinte, formou-se um comité científico — constituído maioritariamente por altos funcionários franceses e alemães — que assumiu a direcção de um grupo de professores liceais de história, irmãmente divididos entre alemães e franceses, ao qual coube a redacção do texto.

O primeiro dos três volumes previstos publicou-se há poucos meses. Não sou a pessoa indicada para me pronunciar sobre ele. A minha área de estudo é, como se sabe, a história colonial e, muito em particular, a história da escravatura, nos séculos XVI a XIX — temas e épocas praticamente ausentes do referido manual. Apenas um CD que acompanha a versão francesa do livro os aborda brevemente num pequeno capítulo suplementar (18 páginas) dedicado ao fenómeno do colonialismo de finais do século XIX a meados do século XX. Quer isto dizer que não conheço a documentação de molde a perceber se o livro contem erros ou distorções, ou se a opção por esta ou aquela imagem foi neutra e inocente. Não possuo termos de comparação, não domino a época histórica nem os seus acontecimentos, que nunca estudei e sobre os quais, claro está, não costumo escrever. Mas houve tamanha insistência para que eu redigisse um texto a respeito deste assunto e do seu eventual significado para o IICT, que, não obstante a muito proclamada “liberdade académica”, me vi forçado — no sentido literal da expressão — a ter de avançar por terrenos desconhecidos.

E, que poderei dizer? Primeiro, que o manual se debruça sobre a história da Europa e do Mundo de 1945 até à actualidade. O texto está dividido em 5 partes. A primeira delas incide nos 4-5 anos que se seguiram ao final da guerra e nas circunstâncias em que tanto a França como a Alemanha se viram mergulhadas. Nessa primeira parte há um pequeno capítulo (16 páginas num livro com 335) dedicado ao tema da moda: a memória que as sociedades guardam e reconstroem dos acontecimentos passados. A segunda e terceira partes fazem um trajecto sobre o papel da Europa no mundo nos últimos 60 anos. A quarta parte trata as correntes e problemas demográficos, económicos, sociais, culturais que marcaram estas últimas décadas; e, por fim, a quinta parte regressa em exclusivo ao binómio França/Alemanha, para repetir a mesma trama cronológica e temática, agora de forma um pouco mais específica e aprofundada.

Como era de esperar o manual transporta consigo as marcas do seu nascimento e propósito, isto é, afadiga-se na promoção de uma ideologia pan-europeísta, sob direcção do eixo franco-alemão, e diaboliza os Estados Unidos. Quanto aos aspectos didácticos, o que a minha já longínqua experiência como professor do secundário me permite ver é que o livro foi elaborado com cuidado, está profusamente ilustrado, os fragmentos documentais de suporte são ricos e a exposição é, em geral, bem construída e clara — como se exige num manual escolar. Ainda assim, o texto tem repetições e contradições óbvias, o que surpreende em obra tão altamente patrocinada. Um exemplo? Depois de
ter garantido (página 64) que a guerra Irão-Iraque foi um conflito regional no qual os blocos ocidental e soviético não desempenharam “aucun rôle”, o manual assegura adiante (página 74) que, nessa guerra, o Iraque beneficiou do apoio dos Estados Unidos e da União Soviética.

Contradições destas talvez sejam aceitáveis num manual escolar — pressupondo-se que, na sala de aula, o professor as esclarecerá — mas seriam indesculpáveis numa obra de historiador, algo que o dito manual obviamente não é. Esta distinção não implica qualquer juízo pejorativo relativamente aos professores liceais. Eu próprio fui professor do secundário durante mais de oito anos e fui-o com grande orgulho e, sobretudo, com grande prazer. Encontrei por lá gente mais sabedora e com mais qualidades humanas do que alguns dos que circulam, emproados ou circunspectos, pelas penumbras e traições da investigação. Não é isso que está em causa mas apenas a constatação de que um manual escolar e a investigação histórica são coisas que se situam em planos muito diferentes, coisas cuja lógica, processos e objectivos diferem substancialmente. O que o ensino liceal procura transmitir através dos seus manuais é uma súmula do conhecimento em versão compactada, juvenil e necessariamente superficial. Ao investigador em história pede-se não tanto a transmissão do que já se
sabe mas a descoberta do que ainda se ignora, isto é, pede-se-lhe que faça avançar o conhecimento histórico para lá das fronteiras onde actualmente se encontra.

E essa é uma das razões pelas quais este manual — como, aliás, qualquer outro — tem escassíssima relação com o trabalho do historiador. É verdade que, no prefácio, os membros do comité científico que dirigiu o projecto asseguram que o seu livro constitui uma mais-valia pedagógica e científica, tanto quanto ao método como quanto ao conteúdo. Esperam, também, que o manual faça escola e que possa servir de modelo e de incentivo a um futuro manual europeu. Garantem, ainda, que com o entrecruzamento de perspectivas franco-alemãs proporcionarão aos alunos uma visão enriquecida. Trata-se, claro está, de presunção e de água benta, que, como sabemos, cada qual é livre de tomar à sua vontade. Os membros do comité científico perfilham manifestamente a ideia de que a multiplicação de pontos de vista produz uma história mais completa, mais verdadeira ou mais profunda. E perfilham, também, a crença de que a aprendizagem de uma história comum aplainará as desinteligências entre os povos — esquecendo as guerras civis que provam o contrário.

São ideias demasiado ingénuas para merecerem muitos comentários. O que importará, talvez, sublinhar é que as circunstâncias e lógicas que presidiram ao nascimento deste manual são absolutamente incompatíveis com o trabalho do historiador. A história não é escrava da actualidade e o historiador que se preza não imprime sobre o passado os esquemas ideológicos contemporâneos nem olha os acontecimentos antigos à luz das sensibilidades actuais. O facto de este manual ter sido encomendado por Chirac e Schröder não surpreende pois a história sempre aguçou o apetite dos políticos. A possibilidade de moldar o passado de acordo com as metas e conveniências de cada momento é demasiado tentadora e desde os alvores do tempo histórico que os chefes de linhagens, de clãs, de estados procuraram promover alianças através da manipulação da memória do passado, estivesse ela plasmada nas genealogias e sistemas de parentesco ou na monumentalidade evocativa dos acontecimentos marcantes. Tudo isso é verdade e será, até, muito interessante mas não releva para a investigação histórica. Seja qual for a opinião que possamos ter acerca do manual franco-alemão, dos seus méritos ou deméritos, uma coisa é certa: ele remete-nos para os planos da ideologia e da política — nomeadamente da política educativa —, e da forma como, nessas esferas, se procura aproveitar ou apresentar a história, mas nada tem a ver com ciência ou com investigação.

Pelo contrário, está nos seus antípodas. Para regressarmos ao exemplo inicial de Anatole France, se os historiadores ficam sujeitos aos interesses variáveis de um qualquer líder político, de um qualquer inconstante Xá, a história converte-se numa canseira, num constante caminhar para trás e para a frente, e acaba reduzida à expressão mais simples das verdades óbvias: os homens nascem, sofrem e morrem. Não se vê, por isso, em que medida poderá o exemplo deste manual franco-alemão interessar ao IICT ou relacionar-se com a investigação histórica que aí se produz. A menos, claro está, que o IICT pretendesse deixar de ser um local de investigação. Mas, nesse caso, não seria conveniente avisar os investigadores de que passariam a ser simples moços de recados? E não seria importante dizer ao país que um dos seus organismos de investigação científica passaria a ser uma mera agência de fretes políticos? - João Pedro Marques (publicado pela primeira vez in IICT, 26 de Janeiro de 2007).