Perry Mason e os ministros

10-10-2013 09:51

A testemunha aproxima-se do banco onde em breve se sentará e jura, com a mão na Bíblia, dizer a verdade, toda a verdade e nada a não ser a verdade. Vi esta cena pela primeira vez no velho Perry Mason — ainda a preto e branco — mas como os norte-americanos têm um verdadeiro fascínio pela justiça, revi-a centenas de vezes nos filmes e nas séries de televisão em que a intriga vai desaguar no tribunal onde, perante a assistência e o juri, a verdade se desvenda e o culpado é encontrado. E, ali, a verdade não tem meias-tintas nem meias-medidas — é ou não é. Trata-se, claro está, de uma visão idealizada dos tribunais (ou das comissões de inquérito) mas é muito representativa da importância que a cultura norte-americana confere ao depoimento e à verdade cristalina.

Na cultura portuguesa as coisas costumam ser assumidamente mais turvas. Num certo sentido a aldrabice faz parte do ethos nacional. Aliás, por cá considera-se de mau tom acusar as pessoas de mentirem; é preferível considerar que elas dizem inverdades ou que caem em imprecisões. E, se quando prestam depoimento, se esquecem dos detalhes mais relevantes ou respondem ao lado, nós temos tendência para achar isso perfeitamente compreensível e, até, desculpável. O que é uma grande pena porque, no quotidiano da nossa vida política, não estamos perante as mentirolas do Vasquinho da Anatomia — para continuar com as referências cinematográficas —, para as quais podemos sempre olhar com divertimento e ternura muito portuguesa, mas sim face a coisas sérias e com graves implicações na vida de todos nós.

Não vou analisar a pastosa relação da ministra Maria Luís Albuquerque com a verdade no caso dos swaps, nem as evidentíssimas e graves “incorrecções factuais” ou “expressões menos felizes” do ministro Machete — é assim que Sua Excelência designa as suas próprias mentiras — no caso BPN ou nas declarações a uma rádio angolana. E também não quero dissecar a complacente “linha vermelha” de Paulo Portas nem as suas “irrevogáveis” decisões, mais os contorcionismos semânticos para justificar o injustificável. E nem sequer irei recorrer às superabundantes declarações de Passos Coelho pois circulam na internet vídeos com as inúmeras “contradições” (chamemos-lhes assim) do senhor primeiro-ministro que me dispensam de ser mais pormenorizado. Todos esses casos já foram sobejamente dissecados e todos parecem claríssimos, por muito que boa gente se tenha esforçado por obscurecê-los. O que quero sublinhar aqui é que estas pessoas — e outras — se movem politicamente num labirinto de subterfúgios, escondendo a verdade, revelando o que sabem a contra-gosto e a conta-gotas, ou mentindo mesmo, com aparente desfaçatez. E, ao fazê-lo, contribuem muitíssimo para o descrédito da actividade política e para a criação de um terreno pantanoso onde todos nos afundamos por falta de certezas e de confiança na palavra dada. Quem é que, a não ser por tenacidade militante ou por insondáveis mistérios de fé partidária, poderá acreditar no que dizem certos governantes? Quem poderá acreditar nas suas promessas e garantias quando mentir já se tornou corriqueiro? As pessoas ouvem, com espanto e descrença, que hoje se diz uma coisa e amanhã o seu contrário, com a mesma cara e como se isso fosse a coisa mais natural do mundo.

Aqui chegados, a questão que se põe é a seguinte: pessoas que se comportam assim devem ser ministros de um governo português? Eu julgo que não. Só deveriam sê-lo se, apanhando-os num dos seus episódios televisivos, Perry Mason conseguisse arrancar-lhes the truth, the whole truth and nothing but the truth, e se, na sequência das suas confissões plenas, o juiz os mandasse em paz. No estado de desconfiança geral em que estamos é imperioso e urgente um acto de elementar higiene intelectual e moral. É absolutamente imprescindível termos à frente do país gente de coluna direita e que fale verdade. Sempre. Meias-verdades não servem. De outro modo o país não será mobilizável para os desafios cada vez maiores que tem pela frente - João Pedro Marques (Publicado pela 1ª vez in Jornal i, 10 de Outubro de 2013).