Os muçulmanos pacíficos e o seu terrorismo

18-04-2016 10:45

Não surpreenderei ninguém se disser que um dos grandes problemas do mundo actual é o terrorismo islâmico. Escuso, até, de lembrar os inúmeros capítulos desse terror apocalíptico porque toda a gente os conhece, infelizmente. Mas um problema correlacionado e que é muito menos referido diz respeito à posição dos muçulmanos pacíficos face a essas pessoas que matam e violentam em nome de Alá. As atitudes mais comuns, tanto quanto posso perceber, são de negação e de rejeição. Que faz o bom e equilibrado muçulmano quando se vê confrontado com
mais um atentado ou uma atrocidade do Estado Islâmico, da Al-Qaeda, do Boko Haram ou de qualquer outra organização similar? Impressiona-se, preocupa-se, condena, mas diz que as pessoas que cometem esses atentados não são muçulmanas nem poderiam sê-lo pois, por definição ─ pela sua definição ─, o islão é paz. Deixem-me dar um exemplo muito representativo e esclarecedor. Há alguns meses uma petição contra o terrorismo foi assinada por mais de 1 milhão de muçulmanos devotos que foram em romagem a um santuário existente perto de Ajmer, no noroeste da Índia. Nesses contexto e ocasião, cerca de 70 mil clérigos muçulmanos emitiram igualmente uma fátua considerando que organizações como a Al-Qaeda, os Talibans e o Estado Islâmico não eram "organizações islâmicas". Alguns dos participantes no encontro de Ajmer pediram, até, que os media deixassem pura e simplesmente de usar o termo "islâmico" quando referissem essas organizações.

Aos olhos de um ocidental ─ deste ocidental, pelo menos ─ estas iniciativas, sendo positivas, são insuficientes e, mais do que isso, são desviadas pois tentam exorcizar o mal de esguelha e sem o agarrar pelos cornos. Quando os líderes espirituais muçulmanos decretam que os terroristas não são verdadeiramente muçulmanos, quando desclassificam e rejeitam as ovelhas negras do seu rebanho, quando amputam o membro doloroso do seu corpo e o defenestram como se ele não lhe pertencesse, estão a negar a evidência e a tentar tapar o sol com uma peneira. Talvez isso
permita tranquilizar a consciência dos crentes ─ se os terroristas não são muçulmanos então o seu terrorismo é um problema do mundo e não, ou não apenas, dos muçulmanos ─ mas trata-se de uma ilusão. O problema é e sempre foi essencialmente muçulmano tal como a violência milenarista que durante séculos abrasou várias regiões da Europa foi um problema cristão. Na base do problema, tanto num caso como no outro, está uma diferença de interpretação dos textos sagrados. No islão, a par dos que concebem a jihad como uma luta interior, a nível da consciência individual pela perfeição da própria alma, há os que a entendem como uma luta de conquista pela expansão da religião islâmica. Os que acreditam que ao matar e subjugar o infiel estão a cumprir a vontade divina, os que chacinam no Bataclan, em Paris, e em muitos outros lugares, são igualmente muçulmanos. As suas acções violentas prolongam ou renovam uma tradição jihadista que tem um extenso e sangrento historial, e escoram-se em passagens do Corão e nas prédicas de vários imãs.

Isso é, aliás, reconhecido e sublinhado por algumas ─ aparentemente poucas ─ personalidades no mundo islâmico. Aquela que de forma mais nítida se pronunciou sobre o assunto foi o general Abdul-Fattah Al-Sisi. No início de 2015, discursando na mais prestigiada e importante universidade do Cairo, o general confrontou os imãs e académicos que o ouviam com as suas responsabilidades enquanto faróis do mundo muçulmano sunita. Lembrou-lhes que certos textos e sermões religiosos tinham ajudado a criar uma ideologia que encorajava o assassinato de não-muçulmanos e que os imãs tinham o dever de pôr fim a isso. Acrescentou que essa ideologia fazia com que o mundo islâmico fosse uma fonte de ansiedade, morte e destruição para o resto do mundo, e, à laia de conclusão, desafiou os imãs a que revolucionassem a religião. O discurso de Al-Sisi, proferido perante uma numerosa audiência de líderes espirituais, foi televisionado para o Egipto e chegou, pelo menos em parte, a muitos outros países. Mas, ao que parece, o desafio que o general lançou para que se reformasse a religião islâmica teve escasso eco e efeito. Quando confrontado com essa questão o Xeque Munir ─ que também é dos que afirma que o Estado
Islâmico não é "islâmico" ─ mostrou-se céptico e pouco entusiasta: "Reformas de quê? Mais
importante é educar os muçulmanos".

A recusa em ver o que temos perante os olhos é um problema sério. As sociedades islâmicas são, como quaisquer outras, maioritariamente formadas por pessoas pacíficas, caridosas, honradas, razoáveis. Mas é necessário que essas pessoas deixem de confundir alhos com bugalhos (não, Xeque Munir, o acto de se fazer explodir num parque de Laore, em prol da causa política e religiosa dos Taliban, não é equivalente ao acto de atirar com um avião contra uma montanha, como fez um piloto da Germanwings), e é preciso que reconheçam que há um enorme potencial agressivo em algumas ideologias religiosas que têm acolhimento nas suas comunidades.
Enquanto o mundo islâmico não o assumir, enquanto não corresponder ao pedido do presidente do Egipto, não iremos longe. Os mais poderosos adversários potenciais do terrorismo islâmico serão os próprios muçulmanos se estiverem dispostos a isolar, denunciar e atacar, no plano da fé e das ideias, a gente que mata em nome do Deus em que acreditam. Este é um combate que só pode vencer-se a partir de dentro - João Pedro Marques (Publicado pela 1ª vez no Diário de Notícias, em 18 de Abril de 2016).