Os filósofos brancos são para deitar fora

03-02-2017 10:15

Há dias, Sir Anthony Seldon, o vice-reitor da Universidade de Buckingham, disse à jornalista do Telegraph que o entrevistou que "há o perigo bem real de que o politicamente correcto esteja a
ficar fora de controlo".

De onde vem este alarme de Sir Anthony? De um novo surto de "correctismo" que se resume em poucas palavras. Alunos da School of Oriental and African Studies, da Universidade de Londres, a prestigiada SOAS, instituição de topo na área dos estudos africanos e asiáticos, querem que os filósofos brancos, isto é, pensadores como Descartes ou Kant, sejam substituídos, nos curricula dos seus cursos, por filósofos asiáticos e africanos. Ou, então, não sendo possível removê-los por inteiro dos programas da SOAS, que as suas filosofias sejam estudadas de um ponto de vista crítico para não deixar passar em claro o contexto colonial em que muitas das suas obras - supõem os ditos estudantes - teriam sido escritas. 

Reivindicações deste género tornaram-se tão frequentes no nosso quotidiano, que poderão não provocar mais do que um simples encolher de ombros ou um sorriso condescendente. Mas, vendo
bem, elas são aterradoras pelo que revelam de ignorância atrevida, de preconceito mental e de estreiteza de vistas. É assustador verificar que há alunos nas universidades europeias que consideram que podem - e, até, que devem - pegar numa fatia enorme do pensamento humano e deitá-lo borda fora apenas porque foi produzido por europeus brancos e em países que tinham práticas coloniais. Como se o facto de alguns países da Europa terem tido, em determinados períodos do seu passado, colónias noutros continentes os tivesse empestado, contaminado, e
tivesse desvirtuado e desvalorizado tudo aquilo que produziram e que lá se passou.

Eu gostaria de dizer a esses alunos e aos que pensam como eles que a filosofia de Kant e dos seus pares é uma riqueza universal. Não é branca nem preta nem de outra cor qualquer. É do mundo e para o mundo. Mas se ainda assim quiserem continuar a compartimentar e descriminar o saber, poderia perguntar-lhes se, quando estão doentes, também tencionam prescindir da engenharia dos brancos que projectou os automóveis e as estradas que os levarão aos hospitais. Ou se, uma vez lá chegados, dispensarão a medicina e a química dos europeus por elas se terem desenvolvido durante a época colonial. Apetecia-me ainda perguntar-lhes se rejeitarão todas as coisas que o pensamento e o labor dos ocidentais deram ao mundo, desde o tempo das grutas de Altamira até ao das viagens interplanetárias. Mas não vou alongar-me neste tipo de perguntas porque sei - todos sabemos - quais seriam as respostas e porque aquilo que verdadeiramente me
preocupa é a frase com que iniciei este artigo: estará o politicamente correcto fora de controlo? Estará a tal ponto disseminado e será a tal ponto virulento que já ninguém tem mão nele?

Não sei responder. Há 15 anos que escrevo sobre o assunto e procuro manter-me a par do que se passa nessa área. Vejo que a onda politicamente correcta tem vindo a tornar-se cada vez mais fundamentalista e obtusa. Ainda que isso seja pouco patente aos olhos de boa parte das pessoas, essa onda tem vindo a corromper e a subverter o nosso ensino, incluindo o superior. Nas últimas décadas, na área das Ciências Sociais e Humanas, as universidades formaram muitos cérebros impregnados de ideias simplistas e erradas mas supostamente benévolas e justas. Formaram gerações de correctores sociais, gente que acha que, agora, por via da linguagem e de mecanismos como as quotas ou os currículos escolares, vai finalmente endireitar o mundo, corrigir os erros e violências passadas e harmonizar tudo como num feliz e imaginário Paraíso Terrestre. Estas pessoas são milenaristas em versão laica e moderna. Julgam-se portadoras da verdade e tentam impô-la com um fanatismo de outros tempos. Sendo exteriormente pacíficas, podem ser tão perigosas e destruidoras como foram os bandos milenaristas medievais. Talvez seja isso que Sir Anthony tem em mente quando nos diz que "há o perigo bem real de que o politicamente correcto esteja a ficar fora de controlo" - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez no Diário de Notícias, 3 de Fevereiro de 2017).