Os cobradores da História

24-03-2014 11:06

Segundo o jornal "El Pais", quinze estados das Caraíbas que se consideram lesados pela existência de escravatura negra nos seus territórios há duzentos anos ou mais, preparam-se para exigir a Portugal e a outros países europeus que os indemnizem por esses tristes factos.
Talvez alguns leitores o desconheçam mas esse tipo de reivindicações não é raro nas Caraíbas, onde está muito disseminada a crença de que a escravatura colonial foi um crime sem qualquer paralelo na história humana, crime esse que supostamente explicaria as dificuldades por que actualmente passam aqueles estados. Nas Caraíbas existem, também, muitos historiadores que põem a História ao serviço das suas convicções e dos objectivos políticos dos seus países. Um desses historiadores é Hilary Beckles, um colega de profissão que em tempos critiquei e com o qual me envolvi em polémica justamente por causa do que
julgo serem as suas avaliações tendenciosas (ver Who Abolished Slavery? A debate with João Pedro Marques, Nova Iorque, 2010). Nem de propósito, Beckles é actualmente o presidente da Comissão para as
Indemnizações das Caraíbas, a tal organização que nos vai exigir a todos a paga pelo que terão feito alguns dos nossos remotos antepassados.

Considero a iniciativa de Beckles e dos seus pares oportunista e aberrante. Entendamo-nos bem: a escravatura colonial foi uma enorme abominação e como tal tem sido entendida pelas nações ocidentais, as primeiras que - convem não o esquecer - a estigmatizaram e interditaram. Mas, na triste contabilização dos horrores da História, não é, infelizmente, um caso único nem na dimensão, nem nas consequências nem mesmo na
duração e, por isso, as reivindicações da gente das Caríbas não podem estribar-se no argumento da exclusividade dramática.

As dificuldades não ficam, aliás, por aí. Efectivamente, como poderemos ter a certeza de que a escravatura foi a causa que deu origem às consequências que sentimos duzentos ou trezentos anos depois? A escravatura negra foi uma forma particularmente violenta e injusta de exploração humana. Mas, ao contrário das Caraíbas, houve zonas, como o sul dos Estados Unidos, por exemplo, que tiveram uma utilização extensiva de trabalho
escravo sem que isso tivesse implicado irremediáveis atrasos. Ou seja, a história das sociedades resulta da conjugação de imensos factores e nunca de um só. Não há, em História, uma causalidade linear mas sim um feixe de variáveis estratégicas que são actuantes num determinado momento e podem deixar de o ser no momento seguinte. Se assim não fosse, poderíamos pedir uma indemnização à França por causa das invasões napoleónicas, alegando que fora por causa delas que o país ficara devastado, que a Corte fugira para o Brasil, que se assinara o Tratado de 1810 - que tantos malefícios fez à nossa economia -, que se dera a revolução liberal, etc., e, de degrau em degrau, chegaríamos até à troika e a este enorme aperto financeiro. Ora, isso não é possível. Mesmo admitindo que um exercício desse género fosse realizável, ele seria ilegítimo porque ao longo destes duzentos anos houve tantos factores que se entrecruzaram no nosso passado e que nos conduziram até aqui que, na verdade, eles são indiscerníveis.

Mas a reivindicação das Caraíbas embate num escolho ainda maior. De facto, quando olhamos para o passado, não devemos aplicar-lhe retroactiva e punitivamente os nossos conceitos jurídicos, éticos e morais. Ainda que tal nos possa parecer horrível e inadmissível, a verdade é que até finais do século XVIII o envolvimento das pessoas na escravatura negra não era concebido, em nenhuma parte do mundo - repito, em nenhuma parte do mundo - como crime nem era, portanto, ilegal. Ora, se isso é assim, não podemos
aplicar a classificação de crime a uma prática que, à época, não era vista como tal, nem podemos onerar e responsabilizar os actuais descendentes de putativos criminosos que ainda o não eram. Por muito que custe aos políticos das Caraíbas, a História não é uma plasticina que possamos moldar ao nosso gosto e à medida das nossas conveniências. João Pedro Marques (Publicado pela 1ª vez in Jornal i, 24 de Março de 2014).