Opus Dei: novos censores, ideias velhíssimas

05-09-2014 21:40

Há tempos um jornalista descobriu que o Opus Dei tinha uma lista de livros desaconselhados. A descoberta terá surpreendido os que supunham que o Index Librorum Prohibitorum 0com que Roma tentara durante séculos policiar o pensamento dos católicos, tinha sido completamente abolido. Verificavam, agora, que ele - ou um seu parente próximo - ainda permanecia nesta cripta do mundo religioso, pronto a saltar-lhes ao pescoço, como nas histórias de vampiros.

É claro que, em bom rigor, e mesmo que o quisesse, o Opus Dei não teria os meios legais e materiais para impor uma proibição ou um desaconselhamento à escala global ou nacional. A lista de livros que apresenta é um guia - chamemos-lhe assim - do que os membros da Obra e outros católicos devem ou não devem ler. Mas, ainda que de âmbito limitado, essa lista põe-nos perante uma forma de aconselhamento literário que acaba por condicionar a livre circulação das ideias e o acesso à cultura. Daí a polémica que se agitou em torno da sua divulgação.

Na sequência dessa polémica, alguém me fez notar que o meu mais recente romance histórico, O Estranho Caso de Sebastião Moncada, tinha passado pelo crivo do Opus Dei. Fui ver. O livro é classificado no grau 6, que é o segundo patamar mais perigoso ou grave de todos. É, portanto, fortemente desaconselhado. E porquê?
Porque apesar de o avaliador reconhecer que a obra trata o assunto "com rigor histórico", conclui que ela tem "inconvenientes morais de peso" pois descreve as relações amorosas de maneira demasiado detalhada e trata a Igreja "de uma forma crítica e pejorativa". Como calcularão, O Estranho Caso de Sebastião Moncada não está sozinho nesse patamar condenatório. Acompanham-no muitos e bons livros que me dispenso aqui de referir, remetendo o leitor para o site https://www.delibris.org/en/ e deixando a investigação à sua curiosidade.

A existência da lista do Opus Dei provocou indignação e repulsa entre alguns dos meus colegas escritores. Houve, também, os que se sentiram divertidos e, até, muito honrados com a condenação, atendendo à sua proveniência. Outros, ignoraram-na olimpicamente. Não foi o meu caso pois acho que ela traz em si qualquer coisa de muito inquietante. O que inquieta não é, claro está, que o Opus Dei faça uma avaliação de livros. Qualquer pessoa ou organização tem direito a ter a sua opinião sobre o quer que seja e a torná-la pública. Isso não se contesta. O que me inquieta é a persistência de quadros mentais que são ainda mais arcaicos e
retrógrados do que podem parecer.

Transportemo-nos magicamente para o Portugal de finais do século XVIII. Nesses tempos pouco livres e nada democráticos, a publicação e circulação de livros e papéis manuscritos ou impressos estava sujeita à Real Mesa Censória (que, adiante, mudaria de nome) e existia uma lista de livros proíbidos, o "Catálogo de Livros Defezos Neste Reyno", que tinha lá tudo o que era de esperar, atendendo à época e ao fechamento cultural em
que os portugueses viviam. O Contrato Social, de Rousseau, ou Candido, de Voltaire, por exemplo, estavam proibidos; a leitura de A Riqueza das Nações, do nada subversivo Adam Smith, reservava-se a "pessoas privilegiadas".

Quando o ferrolho da censura foi quebrado, com o advento do liberalismo e, de uma forma mais decisiva, com a derrota de D. Miguel, em 1834, o "Catálogo" passou a fazer parte das velharias varridas pelo triunfo dos liberais. Ora, o que mais surpreende, é constatar a similitude das apreciações desse "Catálogo" e dos novos censores do Opus Dei. Para eles, Rousseau e Voltaire mantêm-se no topo da malignidade, como se tivessem sido publicados ontem e o mundo fosse o que era há duzentos e trinta anos. Adam Smith continua a ser destinado a alguns leitores, apenas. E os exemplos de paralelismo mental podiam multiplicar-se. Ou seja, o bafiento "Catálogo dos Livros Defezos" já não existe, mas o seu espírito e os seus critérios persistem entre os censores do Opus Dei que são, nessa área, os fiéis depositários e continuadores de um tempo anterior às Luzes e à Liberdade. E isso é verdadeiramente arrepiante - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Jornal i, 2 de Setembro de 2014).