Onde andará a esquerda que preza a verdade?
Como não há duas sem três, venho novamente falar de Lídia Jorge e de aspectos relacionados com o seu discurso de 10 de junho. Faço-o porque a escritora deu há dias uma extensa entrevista à revista Visão na qual esse seu discurso constituiu um tema central. A entrevista foi feita por outra senhora de esquerda, a jornalista Margarida Davim, e foi suave e ideológica q.b., como convinha a uma iniciativa jornalística que procurou acima de tudo reparar o trauma causado pela tonelada de críticas que a escritora sofreu, e restaurar a sua consequentemente abalada aura, dando-lhe a possibilidade de se explicar ou redimir. A entrevista foi, acessoriamente, e para efeitos de amplificação laudatória e fortificante, aplaudida pelo sociólogo e ex-ministro de esquerda Pedro Adão e Silva, no Público, e reverberou nas redes sociais por intermédio de outras cabeças e corações de esquerda. A jornalista Fernanda Câncio, numa lógica de dois em um, aproveitou mesmo o momento para louvar não apenas a “rainha” (sic) Lídia Jorge, mas também a colega jornalista Margarida Davim.
Reacendeu-se e renovou-se, assim, em muita da nossa esquerda, o profundo respeito perante a escritora, vista como alguém que fez um discurso “luminoso”, “sábio”, “maravilhoso”, “corajoso”, “emocionante”, “esperançoso”, “verdadeiro”, “inteligente”, “informado” (sic), “extraordinário”. No fundo, uma voz profética que teria vindo revelar ao país verdades escondidas. Acontece que não foi isso que aconteceu. Na segunda metade do seu discurso Lídia Jorge veio trazer-nos a ideia, correcta e adequada, de que os portugueses são uma mistura de gentes, algo que sempre soubemos e que o lusotropicalismo de Gilberto Freyre se esforçou por acentuar e teorizar — note-se que esse aspecto lusotropicalista do discurso de Lídia Jorge incomodou a extrema-esquerda académica —, mas veio também difundir pelo país vários enganos. No seu discurso de 10 de Junho Lídia disse coisas acertadas e razoáveis, mas fez várias afirmações factualmente erradas, o que talvez não admire. Segundo declarações da própria, terá lido apenas dois livros para redigir esse discurso e aparentemente nenhum deles sobre história da escravatura, o que é pena pois só com muitas leituras específicas — e algum conhecimento da documentação da época — pode alguém falar com propriedade e acerto em assunto tão complexo.
Tive ocasião de apontar os erros mais significativos logo no dia 11 de junho, e de aprofundar a sua razão de ser uma semana depois, e não é preciso voltar a fazê-lo. Quero apenas lembrar, em primeiro lugar, que ninguém contestou a existência desses erros, ou tentou provar que não existissem. E dizer, em segundo lugar — e é esse o ponto principal deste artigo —, que o que mais impressiona é que ninguém de esquerda, nem a escritora, nem a entrevistadora, nem, que eu saiba, qualquer das vozes laudatórias que tanto agora como em junho enalteceram o discurso, referiu, assumiu ou reconheceu os graves erros históricos que nele havia. Talvez uma jornalista menos adulante, menos convergente com o pensamento político da entrevistada pudesse, agora, ter perguntado a Lídia Jorge como fora possível ter-se enganado tanto ou como se sentiu quando esses seus enganos lhe foram apontados — e fundamentadas as razões pelas quais eram enganos —, mas Margarida Davim terá preferido não o fazer.
Aliás, ninguém de esquerda o fez. Não por a esquerda se ter abstido de toda e qualquer censura. Como referi acima várias pessoas dessa área política criticaram os aspectos lusotropicalistas do discurso de Lídia Jorge, mas a esquerda em bloco passou e continua a passar um púdico véu sobre os erros históricos, como se não tivessem ocorrido ou não tivessem tido peso na mensagem que foi transmitida. Infelizmente tiveram. A ideia de que teriam existido 10% de negros em Portugal no século XVII é um disparate, mas permite que se estabeleça um paralelo róseo e benevolente com a presente situação da imigração no nosso país. A erradíssima ideia de que Portugal terá sido o pioneiro ou primeiro promotor do enorme mal que foi a escravatura intercontinental promove e acentua o sentimento de culpa ou a excepcionalidade negativa do país — o primeiro, o inovador, seria o pior dos pecadores; os outros teriam a desculpa do precedente já estabelecido. A ideia de que os homens do século XV eram críticos do tráfico, considerando-o injusto e não se coibindo de o afirmar, é outra ideia equivocada e, pior do que isso, mentirosa, que transmite a sensação, ou mensagem, de que o Infante D. Henrique e os seus escudeiros e navegadores agiram contra os sentimentos e as práticas do tempo, quando, de facto, não agiram. A ideia de que sempre houve quem repudiasse “por completo” (sic) o tráfico e a escravidão, e teorizasse esse repúdio, é outra afirmação falsa que a esquerda gosta de apresentar assim, numa formulação vaga, sem nunca referir os nomes dos que, em cada momento, supostamente o teriam feito. Julgo que Lídia Jorge nunca terá lido The Problem of Slavery in Western Culture. Se for o caso, ganharia muito em lê-lo. Ainda que seja antiga, é uma obra imprescindível para quem quiser perceber como a escravatura foi pensada e sentida no mundo ocidental ao longo do tempo.
Mas voltemos à entrevista para assinalar que tanto a entrevistada como a entrevistadora pensam que houve, em torno ou a propósito daquele discurso de 10 de junho, um confronto entre quem quer ver e quem tapa os olhos; entre os patriotas — nos quais a escritora naturalmente se inclui — e os nacionalistas; entre os progressistas e os neo ou ultraconservadores; entre os que querem desvendar (supostos) segredos, tirar os (supostos) esqueletos dos armários da Nação, e os que a querem desinformada e não admitem a mais leve beliscadura no que entendem ser a honra nacional; entre as forças da luz e do bem, e as forças tacanhas, mesquinhas, que só querem semear o ódio entre os portugueses. Ainda que isso não seja dito pelas duas senhoras — e só raramente seja admitido por qualquer outra pessoa de esquerda — fica implícito que, nesse confronto, ou suposto confronto, a verdade histórica, isto é, a verdade que pressupõe e exige conhecimento e equilíbrio no tratamento e na ponderação da informação sobre o passado, não tem a mínima importância.
Não deixa de ser irónico que Lídia Jorge diga, na entrevista à Visão, que “não quer mentiras”. É também curioso que, tendo em consideração a reacção que o seu discurso aqui provocou — no Brasil, como era expectável, ecoou favoravelmente e a escritora foi recebida de braços abertos —, confesse ter tido “a sensação de uma criança que passou por uma sala e acha que partiu qualquer coisa”, o que em sua opinião (e na de Margarida Davim) terá sido bom. De facto partiu, mas não foi bom. Lídia Jorge partiu a verdade histórica, mas nem ela nem a jornalista que a entrevistou, nem os que em 10 de junho (e agora) a cobriram de louvores, parecem perceber ou querer aceitar isso. Ou então, percebem-no perfeitamente, mas consideram que o erro e a mentira são coisas sem importância, coisas aceitáveis desde que venham da boca dos compagnons de route e se destinem a promover as causas e as lutas da esquerda. O que, diga-se, é uma pena e um atentado à salubridade do debate de ideias na esfera pública. Onde pára a gente de esquerda que, noutros tempos, costumava valorizar e prezar a verdade? Por que razão está agora calada? Ter-se-á extinguido? - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 6 de Agosto de 2025).