Oh, como os woke são virtuosos!

11-12-2024 23:12

Na sequência da derrota eleitoral de Kamala Harris, vários portugueses de esquerda — Isabel Moreira, por exemplo — sentiram a imediata necessidade de vir defender a tese de que essa derrota não fora, em parte, consequência da linguagem e agenda woke do partido Democrata e da própria candidata, e que o wokismo, tanto lá como cá, não era senão a defesa dos direitos humanos. Eu escrevi nessa altura um artigo intitulado “Sacudir a água do capote” que analisava e comentava essa necessidade e essa inocente e bondosa tese dos direitos humanos, sublinhando que o wokismo tinha uma componente persecutória e canceladora muitíssimo vincada, indo bem para lá da mera defesa dos direitos das pessoas pois que também se dedicava a perseguir outras pessoas e reduzir-lhes ou anular-lhes o direito de discordar, de forma fundamentada, do programa de acção woke quanto à história colonial, às questões de identidade, etc.

Não convencida, a esquerda radical — porque também há a esquerda que tem uma opinião diferente — continuou a insistir na teoria de que o wokismo mais não seria do que a defesa dos direitos fundamentais. Foi também isso que, na passada 6ª feira, em artigo no Expresso, Alexandra Leitão veio dizer, para dentro e para fora do PS, quando defendeu a necessidade das suas tropas manterem o rumo: “É verdade que a agenda identitária — pejorativamente designada como woke pela direita e pela extrema-direita — tende por vezes a tribalizar a sociedade e a separar em vez de unir”, reconheceu a deputada. Porém o que há a fazer, mesmo em termos eleitorais, considerou, não é abdicar dessa agenda, mas compatibilizá-la com a defesa do Estado social. Não se derrota a extrema-direita adoptando o seu discurso, escreveu Alexandra Leitão, mas sim reafirmando o “discurso progressista, tolerante, inclusivo, justo e solidário”. Foi também isso que, no dia seguinte, no jantar do PS em que se comemorou o centenário de Mário Soares, e em perfeita sintonia com a sua líder parlamentar, Pedro Nuno Santos quis realçar ao dizer que o que incomoda “(a extrema-direita) são os avanços que os socialistas e os portugueses conseguiram nos direitos das mulheres, na igualdade, no respeito por todos, o respeito pelo direito a amar quem quisermos. Não é agenda woke, chama-se direitos humanos, igualdade, justiça social.”

Na óptica destas pessoas, e de muitas outras do seu quadrante político, o wokismo seria, portanto, um virtuoso movimento que mais não pretenderia do que pugnar pelos justíssimos direitos das pessoas. Sucede que, como já referi, essa é apenas a parte doce e positiva desse filme. Há uma parte ácida, amarga, que nem Alexandra Leitão nem Pedro Nuno Santos consideraram e reconheceram, e todavia ela existe e está bem à frente dos nossos olhos. Aliás, por curiosa coincidência, no exacto momento em que estes líderes do PS exprimiam a sua opinião sobre o que seriam os propósitos da gente woke, o Grupo de Acção Conjunta Contra o Racismo e a Xenofobia tornava público que iria entregar, no dia 10 de Dezembro, na Assembleia da República, um requerimento para a criminalização de todas as práticas racistas. Fiquei a saber pelo jornal Público que uma das pessoas que dá a cara pela proposta de alteração da lei — tendo contribuído, aliás, para a sua elaboração — é Anizabela Amaral, uma senhora que não conheço pessoalmente, mas sei que é jurista, activista, que está ligada à SOS Racismo e que alguns aspectos da sua intervenção pública ilustram perfeitamente o que é o wokismo. Vejamos como:

Por um lado há o esforço de Anizabela Amaral para, através desta alteração da lei, defender melhor as pessoas que são vítimas de atitudes racistas. Não sou jurista nem estou senão superficialmente ao corrente do que se pretende com tal proposta, mas não tenho razão para duvidar de que esteja bem feita e que procure ser um avanço nos campos da igualdade e da justiça social. Mas por outro lado, Anizabela Amaral desenvolve nas redes sociais acções tendentes a difamar, injuriar e cancelar. Sei-o por experiência própria porque estou a par do que tem escrito sobre mim. De facto, esta senhora — que, como é óbvio, também não me conhece de parte nenhuma — considera que o cronista João Pedro Marques “é pessoa de ideias perigosas”; que destila “ódio racista nas (suas) crónicas de agressão”; que, nos seus escritos, “comete o crime de incitamento ao ódio contra pessoa ou grupos de pessoas por causa da sua cor e origem étnico-racial”; que o seu “objectivo é silenciar as pessoas racializadas para que se reduzam ao lugar na História que o Sr. João acha que lhes está destinado”; que leva a cabo “ataques sórdidos a activistas anti-racistas”; que “arrasta (consigo) os milhares de racistas sedentos pelas suas investidas”; que “respira, vive, para atacar activistas através de crónicas de opinião por ter um lugar na imprensa”; que o “Portugal colonial, racista, machista e misógino, (o) aplaude e ele continua, impunemente, a formar a opinião pública”; que “o descaramento e a desonestidade são a sua marca de água”; que “comete crimes contra a honra”; e mais coisas do mesmo teor e idêntica carga insultuosa e agressiva. Aliás, Anizabela Amaral conclui — e repete-o várias vezes — que “é preciso travar o discurso de ódio presente nos (meus) textos”, que “é urgente parar esta máquina de ódio ao serviço da extrema-direita portuguesa, com lugar na imprensa, que há muito (me) devia ter fechado portas” e expressa o desejo de que eu seja “afastado dos media imediatamente!”.

Importa acrescentar que Anizabela Amaral não escreveu tudo o que aqui deixo referido num grupo privado de meia-dúzia de amigos, mas em páginas de acesso público, algumas delas com centenas ou milhares de seguidores. Há, por isso, motivo para perguntar o seguinte: não será esta senhora, através do que contra mim escreve nas redes sociais, e nos termos em que o faz, que comete crimes contra a honra e que incita ao ódio contra a minha pessoa? Mas a resposta a essa pergunta, que julgo ser óbvia, levar-nos-ia por outro caminho e eu não quero perder o foco do assunto principal que aqui me trouxe e que é a suposta virtude do wokismo. Salvo melhor entendimento esta senhora, que é manifestamente woke,  personifica a faceta censória desse movimento, aquela faceta que Alexandra Leitão e Pedro Nuno Santos não incluiram no seu benevolente retrato do wokismo que, segundo eles, mais não quereria do que defender os direitos humanos. Esqueceram-se de que o movimento woke também quer difamar os adversários, calar-lhes a boca e injuriar aqueles que, tendo a ousadia de considerar errada e contraproducente a forma como o wokismo luta pelos direitos humanos, consideram que um dos direitos fundamentais que essa maneira errada de lutar afronta e lesa é a liberdade de expressão.

E como o seguro morreu de velho, talvez seja de precaver que as coisas possam resvalar nesse sentido. Se uma jurista considera repetidamente que eu seria racista e que os meus escritos seriam discurso de ódio e todas as coisas negativas que mencionei acima, podemos admitir que essa senhora tem concepções muito peculiares sobre o que são o racismo e a liberdade de expressão. Se, entretanto, ficamos a par de que essa jurista foi uma das pessoas que elaborou a proposta de alteração legislativa agora apresentada na Assembleia da República, então talvez haja motivo, mesmo sabendo que importa não confundir o mensageiro com a mensagem, para recomendar aos deputados que prezam as liberdades e que irão analisar essa proposta, que o façam com muita atenção e todo o cuidado. É que, como conservador que sou, eu concordo com Kemi Badenoch quando ela defende que a lei — britânica, no seu caso — deve ser revista de forma a que as chamadas “hate crime laws” não asfixiem o “free speech”, esse velho e saudável hábito britânico e ocidental. Seria terrível se, a ser aprovada, a proposta agora entrada no nosso parlamento fosse precisamente no sentido contrário.

Para concluir eu dirijo uma pergunta a Alexandra Leitão, Pedro Nuno Santos, Isabel Moreira e aos outros membros da ala esquerda do PS: tendo em consideração o que aqui explicitei sobre as opiniões de pessoas como Anizabela Amaral — o meu radar apanha muitas mais —, ainda estarão convencidos de que o wokismo mais não é do que uma forma pejorativa de designar a defesa dos direitos humanos? - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 11 de Dezembro de 2024).