O realejo encravado

14-08-2023 10:35

Em Abril de 2017 a esquerda woke veio exigir um grande debate público sobre a escravatura. O debate tem-se feito, mas completamente de esguelha e por portas travessas. Durante estes seis anos e quatro meses interpelei frontalmente as opiniões e escritos de várias pessoas que gostam de se definir como racializadas: Mamadou Ba, Grada Kilomba, Luísa Semedo, Joacine Katar Moreira, Beatriz Gomes Dias, Cristina Roldão (muitas vezes) e várias outras.

Se exceptuarmos o sociólogo Elísio Macamo, nenhuma dessas pessoas procurou uma vez que fosse contraditar os meus argumentos ou apresentar factos que tentassem provar eventuais lapsos meus. Nenhuma dessas pessoas replicou para tentar demonstrar que eu não teria, eventualmente, razão. Ao longo destes seis anos e quatro meses repetiram o mesmo discurso e os mesmos erros factuais como um realejo encravado, e nunca foram capazes de sair daí para um confronto de ideias, provas, documentos, teorias ou explicações históricas devidamente fundamentadas. Limitam-se a reproduzir uma cartilha e partes do caderno de reivindicações que recentemente deixaram bem explícito na por elas designada “Declaração do Porto”. Pior. As pessoas de que falo repetem há cerca de seis anos e meio a mesma propaganda sabendo que é falsa. A sua mensagem não tem variações nem correcções, como seria normal acontecer com gente inteligente e bem formada que se apercebesse do erro. Mas não, nada disso. Por isso repetem desde Abril de 2017 que Portugal enviou seis milhões de escravos para as Américas, quando esse número — e eles sabem-no — corresponde à soma aritmética do transporte efectuado por dois países diferentes, Portugal e o Brasil independente, isto é, o Brasil pós 1822 já autónomo de Portugal. Por isso afirmam que Portugal foi o último país da Europa a abolir a escravidão quando, na verdade, foi a Espanha, etc.

Diga-se que, com duas ou três excepções, o mesmo se passa com os potenciais contraditores brancos. Os Miguel Vale de Almeida, Daniel Oliveira, Luís Trindade, Miguel Cardina e vários outros vultos da esquerda académica ou jornalística tapam os olhos e os ouvidos e fazem de contas que não ouvem o que digo nem lêem o que escrevo acerca das suas prédicas. Não o fazem por ter medo de mim, claro está, mas por terem medo de si próprios. Não querem expor a sua ignorância sobre a matéria. Por isso agarram-se a uma boia estereotipada da qual não se desviam nem um milímetro que seja porque sabem que ficariam imediatamente fora de pé.

Este comportamento de brancos e negros woke que querem descolonizar o conhecimento e que exigem debates, mas não debatem explica-se, em parte, por ignorância, mas vai mais fundo do que isso. Patrícia Fernandes mostrou com grande perspicácia e profundidade, aqui no Observador, por que razão não é possível debater estes assuntos com estas pessoas e é útil seguir as suas ideias principais. 

Essas pessoas acreditam que “a Razão, a Ciência e o Conhecimento são fruto, não de conquistas humanas universais, mas do Ocidente e da branquitude”. Buscam, por isso, caminhos para escapar a esse tridente ocidental — chamemos-lhe assim — e, em conformidade, valorizam a subjectividade. Uma das decorrências dessa posição é a errada convicção de que só os negros podem saber o que é ser negro, ou, citando Patrícia Fernandes, “só aqueles que são alvo de violência podem compreender verdadeiramente essa violência e por isso apenas estes podem decidir que actos são necessários para terminar/corrigir essa violência. E tratando-se de uma experiência subjectiva, as emoções assumem um lugar central na discussão pública: raiva e dor substituem as obsoletas ferramentas racionais centradas em argumentos e factos.”

Abro aqui um parêntese para dizer que essa teoria woke é completamente trôpega e, se aplicada à generalidade da vida social, tornaria impossível a comunicação e o entendimento entre as pessoas. Um psiquiatra mentalmente são não poderia compreender um esquizofrénico, um progenitor do sexo masculino não poderia pôr-se no lugar da sua filha, um pacífico juiz seria incompetente para julgar um violento homicida, um obstetra não poderia entender os sintomas e as apreensões de uma grávida, etc. Os exemplos podiam multiplicar-se até ao infinito, mas o que importa sublinhar — como, aliás, Patrícia Fernandes sublinha —, é que se tudo é subjectivo e depende da experiência pessoal, então o diálogo e o debate tornam-se impossíveis. E, por esse caminho, a destruição dos fundamentos e da consistência do saber universitário — ou do saber, puro e simples — está mesmo ali ao virar da esquina.

Patrícia Fernandes dá-nos dois exemplos disso, um dos quais o de Vanusa Vera-Cruz Lima, a doutoranda que apontou uma série de passagens racistas — Oh, que espanto! — em Os Maias, um romance de Eça de Queirós passado num tempo em que o racismo era uma ideologia acreditada e difundida e em que muitas pessoas tinham ideias racistas. Indiferente a esse facto, ou desconhecendo-o, Vanusa Lima recomendou que editoras e professores fizessem “notas pedagógicas” nessas passagens quando publicassem ou leccionassem a obra. Essas suas posições e sugestões foram alvo de críticas e objecções, como é natural, razoável e saudável. Mas Vanusa Lima desvalorizou todas elas não por  serem fracas, erradas ou mal fundamentadas, mas porque, como ela própria disse, “as pessoas que me criticam têm cor e têm classe, com muito privilégio”.

Ou seja, não valorizou a força dos argumentos que lhe contrapunham, mas a sua autoria. Dito de outra forma, para um negro woke os meus argumentos, por mais fortes e acertados que sejam, estão errados e não interessam porque… sou branco. Para um woke branco e de esquerda que quer descolonizar o conhecimento, não são de considerar porque sou burguês e de direita. Aqui chegados, apetece-me abrir um novo parêntese para perguntar o seguinte: onde estão os responsáveis universitários que produziram esta seita de irracionais? Podem limpar as mãos à parede porque fizeram um óptimo trabalho lectivo e humano.

Fechado o parêntese, vamos ao que importa, que é o debate e o conhecimento. Neste estado de coisas o que há, então, a fazer? Como é que se dialoga com os realejos encravados da esquerda e com a sua campanha de mitos? Não se dialoga. O que há a fazer é prosseguir a argumentação e a explicitação dos factos, não para que da discussão nasça a luz — com os woke hermeticamente fechados na caixa estanque das suas teorias auto-justificativas qualquer discussão é impossível —, mas para que a parte racional da sociedade possa ter a informação que lhe permita formar as suas próprias opiniões e conclusões. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 14 de Agosto de 2023).