O memorial. Pergunta a Carlos Moedas

24-07-2023 10:22

O assunto do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas voltou ultimamente à ordem do dia porque várias organizações e pessoas vieram acusar a actual presidência da Câmara Municipal de Lisboa (CML) de estar a boicotar e a protelar a realização de um projecto já anteriormente aprovado. De facto, a criação de um memorial aos africanos escravizados foi proposta pela Djass – Associação de Afrodescendentes em finais de 2017 e votada favoravelmente pelos munícipes. Em 2019, após concurso por convite, foi seleccionado um projecto do artista angolano Kiluanji Kia Henda para lhe dar forma e concretização. Trata-se de algumas centenas de canas de açúcar enegrecidas para representar duas coisas em simultâneo: por um lado, a estreita relação que existiu, nas plantações tropicais, entre o trabalho escravo e a produção açucareira; por outro lado, para evocar as revoltas escravas que se manifestavam frequentemente pelo incêndio dos canaviais. Abro aqui um parêntese para dizer que se trata de um bom projecto. É verdade que a imagética é claramente importada. Não havia grandes plantações de cana-de-açúcar em Portugal, nunca cá houve um número considerável de escravos negros nem houve, claro está, revoltas. Mas o projecto é esteticamente equilibrado e a simbologia aceita-se. Fechado o parêntese acrescento que o local escolhido para implantação do memorial era o antigo Campo das Cebolas, agora chamado Largo José Saramago, local que foi aceite pela Djass, ainda que inicialmente tivesse preferido a Ribeira das Naus.

Todavia, já na actual presidência de Carlos Moedas, a CML informou a Djass de que, face aos pareceres negativos da Direcção-Geral do Património Cultural e da EMEL o local teria de ser alterado e propôs outra localização, próxima do terminal de cruzeiros de Santa Apolónia. A Djass rejeitou essa proposta e começou a acusar a CML de má-fé e de tentativa de bloqueio do projecto, o que Carlos Moedas e outros responsáveis camarários negaram, garantindo que o projecto iria concretizar-se.

Essa é, a meu ver, uma garantia credível, não só pela seriedade dos que assim o garantem mas também porque não há na sociedade portuguesa, que eu saiba, quem publicamente se oponha ao memorial ou queira impedir a sua edificação. Eu próprio, que serei dos que mais criticam o conteúdo das mensagens e os métodos flagelantes dos activistas woke, defendi já há muito tempo e por diversas vezes, a construção desse memorial. Aquilo a que me oponho é a que se encharque a cidade de evocações do mesmo género, que seriam muito desproporcionadas porque Lisboa teve um papel limitado no tráfico transatlântico de escravos.

Há, contudo, a tendência para esconder e subverter esse facto histórico e ainda há dias pude ler, incrédulo, num artigo da jornalista Bárbara Reis que teria sido “ao Campo das Cebolas — antigas Portas do Mar — que, durante séculos, chegaram milhões de escravos trazidos à força de África.” Isto é uma asneira do tamanho do Evereste. Nunca vieram milhões de escravos para Lisboa. Foram milhões, sim, directamente de África para o Brasil e outras partes da América. Para Lisboa e mais localidades da Europa terão vindo, desde meados do século XV, 120 a 170 mil, ou seja, uma infinitésima parte daquilo que a articulista nos atribui.

É desanimador que continuem a escrever-se asneiras deste gabarito após anos de publicações sobre o assunto da escravatura, em que, tanto no Público — que Bárbara Reis dirigiu e onde continua a escrever — como noutros jornais, se mostrou que Lisboa teve um papel muito secundário nesse odioso comércio. De toda a forma esse é apenas um dos detalhes infelizes — outros há — no artigo de Bárbara Reis, e admito que tenha resultado da persistente campanha de mistificação e desinformação levada a cabo pelos activistas woke. O que importa realçar é que o objectivo último do  texto da ex-directora do Público não é esse, mas sim o de propor que, para quebrar o impasse entre a CML e a Djass, o memorial se construa em Belém. Defende Bárbara Reis que seria um “belo contraponto” aos monumentos que, aí, enaltecem os Descobrimentos. E, à laia de conclusão, deixa a seguinte sugestão: “se colocássemos, lado a lado, o memorial da escravatura e um dos monumentos do poder colonial? Seria um belo enfrentamento, um corpo a corpo emocionante, pedagógico e que dispensa legendas. Com um gesto simples, Carlos Moedas pode pôr os fantasmas a falar uns com os outros”.

Eu duvido fortemente de que esta solução fosse pedagógica e julgo que uma conversa de fantasmas seria necessariamente superficial, confrontativa e não esclareceria ninguém. Mas a proposta de Bárbara Reis faz sentido, escreve direito por linhas tortas, ainda que fique aquém do que seria desejável. Em minha opinião, e de forma coerente com o que defendo há vários anos, o memorial devia ser construído num terreno adjacente — eventualmente no próprio acesso ou entrada — a um Museu dos Descobrimentos, onde quer que ele venha a existir. É isso que faz pleno sentido, o mesmo sentido de diálogo integrador de informações e memórias que Bárbara Reis propõe. O tráfico transatlântico de escravos foi uma trágica consequência da expansão marítima portuguesa ao longo da costa de África e viria a crescer exponencialmente com a descoberta das Américas, verdadeiros sorvedouros de mão-de-obra africana. O tráfico é a parte negra de uma história que, noutras vertentes, é luminosa, benevolente e grandiosa. E ambas as partes devem vistas e perspectivadas em conjunto. Nenhuma deve ser ignorada ou suprimida. Junto a um Museu dos Descobrimentos, devidamente integrado nesse espaço, o memorial estaria contextualizado, explicado e teria asseguradamente muitos visitantes.

É claro que há aqui um problema de monta. O Museu dos Descobrimentos ainda não existe e duvida-se de que venha a existir até porque tem como principais opositores grupos de pressão nascidos e nutridos na academia e os próprios impulsionadores e promotores do memorial à escravatura, que, na mesma onda paranoide que agora os leva a acusar a CML de má-fé, encaram esse museu como algo feito contra eles. Recorde-se que o museu era — com esse ou outro nome — uma promessa do anterior presidente da Câmara, Fernando Medina, promessa que não conseguiu ou não quis cumprir. Esse projecto, tanto quanto sei, não faz parte do programa governativo de Carlos Moedas. Mas mesmo não sendo originalmente seu, o actual presidente da CML está sempre a tempo de o perfilhar e reanimar, resolvendo, assim, dois problemas de uma só penada. Quererá Carlos Moedas pensar nisso? - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 24 de Julho de 2023).