O memorial, os mitos e a linha vermelha
Várias vezes me pronunciei a favor do memorial da escravatura que os activistas woke querem erigir em Lisboa. Fi-lo em 2018, afirmando que ele partia de uma “ideia justa”, voltei a fazê-lo em 2019 e, depois, em 2023 para dizer que se trata de um bom projecto, esteticamente equilibrado e com uma simbologia, que sem ser exactamente aquela que mais se adequa ao caso de Portugal, se aceita.
Ao contrário de André Ventura, que recentemente se insurgiu na rede social X contra o memorial aos escravos negros, eu saúdo a notícia de que ao cabo de anos de espera e de um ror de suspeitas ou de acusações de que as vereações de Fernando Medina e, depois, de Carlos Moedas, estariam a varrer o assunto para debaixo do tapete, ele irá ser finalmente concretizado na Ribeira das Naus. Não me pronuncio quanto ao local escolhido, mas o projecto sempre me pareceu bom, por ser simples, sem hiper-dramatização, mas muito certeiro na evocação que faz da ligação que desde sempre existiu entre o tráfico transatlântico de escravos e o canavial, o engenho e a fábrica de açúcar. É bom que esse memorial seja erguido porque os grupos humanos precisam de ter lugares de memória. Se os africanos e afro-descendentes se revêm num memorial desse tipo, devem tê-lo, do mesmo modo que, contrariamente aos desejos de activistas como Joacine Katar Moreira, por exemplo, devem desistir de ideias vesgas como a de deitar abaixo o Padrão dos Descobrimentos e mais monumentos ou memoriais em que outras pessoas se revêm.
Mas a par desta minha saudação à iminente concretização da obra, reactiva-se em mim um receio que sempre tive e também por várias vezes manifestei: o de que, associado ao monumento, se veicule uma narrativa falsa e se construa uma mitologia. É por isso imprescindível garantir que não se associe a essa justa homenagem a ideia militante e romântica, mas sem qualquer suporte histórico, de que a abolição da escravidão e do tráfico de escravos em Portugal teria de algum modo resultado da resistência das pessoas que foram escravizadas. É igualmente necessário assegurar que não se entregue o Centro Interpretativo que venha provavelmente a ser acoplado ao monumento a académicos ou activistas políticos com interpretações pré-fabricadas em vez de o colocar na alçada de pessoas que saibam interpretar e contextualizar historicamente o tráfico transatlântico de escravos e a escravidão, razão pela qual sugiro desde já o nome de Arlindo Manuel Caldeira, uma pessoa que sabe do assunto e que, sendo de esquerda, não está enfeudada à agenda woke. E é necessário, por fim, que este monumento — que, repito, é justo — não seja o primeiro de vários outros espalhados por Lisboa e pelo país pois isso seria desadequado, desproporcionado e não reflectiria o que se passou.
De facto, Lisboa não foi a capital, muito menos a capital monopolista e hegemónica, do tráfico negreiro português como poderíamos ser levados a pensar pelo que por aí se diz e se escreve. Ao contrário do que afirma a jornalista Isabel Salema, no Público, a capital do nosso país não desempenhou “um papel central no tráfico transatlântico de seres humanos durante séculos”. Essa afirmação é falsa e é preciso desmontá-la. Como já mostrei num artigo anterior saíram do actual território português — isto é, de Lisboa e de outros portos —, apenas 4% do total de navios que foram a África buscar escravos negros.
Há dias ouvi Inocência Matta, uma senhora woke que é professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, insurgir-se, num programa da Antena 3, pelo facto de Nantes ter várias estruturas evocativas do tráfico de escravos e Lisboa ainda não ter nenhuma. Mas não há razão para espantos ou indignações. Os navios partidos de Nantes transportaram muito mais escravos africanos para as Américas do que os que partiram de Lisboa, e, no seu conjunto, os portos franceses (Nantes, La Rochelle, Le Havre, Bordéus, etc.) foram responsáveis por 13,5% dos navios envolvidos no tráfico negreiro, ou seja, o triplo dos que, como já referi, partiram de Lisboa e de outros pontos de Portugal Continental.
Portanto, tudo somado, Lisboa teve um papel limitado no tráfico negreiro e é preciso que não deixemos que, à sombra do futuro memorial, se construa uma narrativa mítica e culpabilizante que distorça de forma grosseira aquilo que efectivamente aconteceu. Mais. É preciso que não deixemos que o memorial seja o primeiro passo ou o passaporte para a construção de um Museu da Escravatura sem que haja, antes, um Museu dos Descobrimentos. Como já escrevi em 2018 eu preferiria que uma futura abordagem museológica da relação de Lisboa (ou do país) com a escravatura se fizesse no âmbito e no espaço de um Museu dos Descobrimentos, ainda por construir. E preferiria porque assim se transmitiria a ideia de que os Descobrimentos — como geralmente acontece com os acontecimentos de grande fôlego, que envolvem muita gente e têm grande amplitude espacial e cronológica —, tiveram aspectos positivos, construtivos e auspiciosos, e outros negativos, destrutivos e cruéis. De qualquer modo não me oponho a que existam dois museus dierentes. Aquilo a que me oponho é que possa haver um Museu da Escravatura sem antes haver um dos Descobrimentos.
Ora, basta andar pelas redes sociais para saber que os activistas woke não só têm o Museu da Escravatura como objectivo como têm igualmente por meta impedir que haja um museu dedicado aos Descobrimentos portugueses. Julgo, por isso, que se os políticos de direita — toda a direita — e, até, da esquerda razoável não quiserem ser novamente apanhados a dormir na forma, se não quiserem ser ultrapassados pelos acontecimentos e confrontados, depois, com factos consumados, terão de começar já a mexer-se e deverão traçar uma linha vermelha para além da qual não aceitarão que se passe, linha essa que posso enunciar da seguinte maneira: não é admissível que se avance para um Museu da Escravatura — tenha ele essa ou outra designação —, sem que haja prévia ou simultaneamente um museu destinado a mostrar e a explicar, aos que nos visitam e aos nossos alunos, o que foram os Descobrimentos.
Assim, se André Ventura quiser ter um papel construtivo neste combate deverá empenhar a sua energia e a do seu partido não tanto a tentar obstaculizar o memorial, um passo da Câmara Municipal de Lisboa que é legítimo, mas a garantir duas coisas. Em primeiro lugar que ele não descarrila, não exorbita e que não se presta a falsificações históricas. Em segundo lugar que a CML deve avançar no sentido da criação do de há muito prometido Museu dos Descobrimentos, ou, pelo menos, como já se projectou no passado, da construção de uma réplica de um navio do século XVI que poderia ser visitado e servir de centro histórico e explicativo. Seria mesmo fundamental, agora que as eleições autárquicas se aproximam, que a direita e os jornalistas, claro, questionassem Carlos Moedas e outros candidatos a vereadores do PSD e da Iniciativa Liberal — do CDS e do Chega não será necessário porque a posição desses partidos é conhecida — sobre estes assuntos, para que os eleitores saibam exactamente com o que podem contar. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 2 de Julho de 2025).