O manual "descolonizado" com que os activistas sonham

12-03-2022 22:49

É bem sabido que a esquerda woke procura insistentemente alterar o ensino da História. De início os que batiam nessa tecla não nos diziam exactamente o que pretendiam mudar e como. O recente artigo de Cristina Roldão, ao fazer uma listagem daquilo que, na sua percepção, seriam omissões ou distorções de alguns manuais escolares, e ao pedir “um manual descolonizado” neste nosso “país por descolonizar”, traz-nos uma espécie de guião que nos conduz pela estrada das reivindicações. Algumas são adequadas, diga-se. É, por exemplo, correcto que se exija que africanos actuais não sejam apresentados como “primitivos”. É, também, razoável que se peça que os escravos transportados através do Atlântico não sejam referidos como mercadorias. Porém, há outras pretensões que são mitos ou confusões e não deverão ser conteúdos de futuros manuais.

Tomemos um parágrafo do texto de Cristina Roldão que ilustra muito bem as pretensões que refiro. Reportando-se ao tema da abolição da escravatura em Portugal, diz a autora que, nos manuais, “esta tende a ser vista como resultado exclusivo de vontades ocidentais.” Perante isso, pergunta: “Como ignorar a Revolução do Haiti? Como ocultar exemplos da resistência negra à escravatura, como o Quilombo dos Palmares, a Revolta dos Angolares e a Rainha Nzinga, apresentada mais como convertida ao cristianismo e ‘vassala’ de Portugal, do que enquanto estratega militar e política na resistência ao domínio português? Um dos manuais até apresenta um excerto do livro A minha Verdadeira História, da autoria de Olaudah Equiano (1789), célebre abolicionista negro. Mas aquilo que parecia ser uma boa iniciativa é rematado com a seguinte pergunta: ‘Parece-te que o depoimento deste jovem (Olaudah Equiano) merece confiança? Porquê?’ (História 8).”

Neste parágrafo há vários erros e confusões. Comecemos pelo fim. Cristina Roldão constata, com agrado, a transcrição de um trecho de Equiano, mas logo se escandaliza por o manual perguntar aos alunos se aquele trecho merecerá confiança. Ou seja, Cristina Roldão deixa implícito que essa pergunta só é feita por Equiano ser negro. Ora, perguntar se um depoimento ou documento merece confiança é a tarefa básica de qualquer historiador e de qualquer pessoa que queira ter uma visão lúcida e desapaixonada sobre os acontecimentos. É nisso que consiste a crítica histórica e é bom que esse sentido crítico seja transmitido desde cedo aos alunos. Nada a objectar, portanto, à pergunta do manual. Não precisamos de estar constantemente a ver racismo em tudo o que mexe, mas esta passagem revela bem o estado de espírito, susceptível e de constante pé atrás, com que Cristina Roldão e muitos dos que comungam dos seus pontos de vista partem para a análise dos manuais escolares.

Passemos agora à Rainha Nzinga. Ser “estratega militar e política na resistência ao domínio português” não faz de Nzinga uma “resistente à escravatura”, como Cristina Roldão afirma. A rainha angolana era, pelo contrário, senhora de muitos escravos e uma participante activa nesse negócio. Há uma confusão semelhante a respeito do quilombo dos Palmares. Ser membro do quilombo não implicava necessariamente uma atitude anti-escravista, como mostrei num outro artigo. Havia ex-escravos residentes em Palmares que tinham escravos e o mesmo se passava em muitos outros quilombos. Como escreveu o historiador norte-americano Ira Berlin, em 2006, os escravos “objected to their own enslavement but rarely to the practice of slavery”. Palmares não é sinónimo de abolição da escravidão.

E quanto ao Haiti? Na fantasia dos que querem à viva força alterar o ensino da História a escravatura teria acabado no mundo por ter havido uma grande revolta de escravos na colónia francesa de Saint-Domingue (futuro Haiti) e indignam-se por isso não ser suficientemente notado e apontado. Tenho mostrado repetidamente que a história que tentam vender-nos a respeito do Haiti está mal contada, mas o que mais importa assinalar, no contexto deste artigo, é que o Haiti nada tem a ver com a abolição em Portugal. Se há historiadores que — equivocadamente a meu ver — tentam estabelecer um nexo entre essa revolta e uma etapa intermédia do processo abolicionista britânico, esse nexo é totalmente inexistente no caso português. Não houve qualquer relação de causa-efeito entre a revolta haitiana e a decisão política de abolir a escravidão nos territórios portugueses de África. Foram outros factores, como a necessidade política de seguir o exemplo estrangeiro por razões de prestígio e honra nacionais, e a miragem de uma futura vantagem económica, que fundamentaram essa decisão.

É muito interessante perceber de onde vem esta actual hipervalorização do papel do Haiti na história do abolicionismo, mas isso ficará para um próximo artigo. Aqui quero apenas sublinhar que Cristina Roldão deseja, por razões claramente ideológicas, que, a propósito da abolição da escravatura em Portugal, os manuais remetam os alunos para a rainha Nzinga, o quilombo de Palmares, o Haiti, etc., que nada têm a ver com o assunto. São entorses e erros como esses que quem exige novas narrativas e manuais “descolonizados”, pretende introduzir no nosso ensino da História. É certo que o objectivo último dessas exigências é o de trazer mais africanos para o primeiro plano da História. Esse objectivo é enriquecedor, mas não pode ser realizado artificialmente, por via política e ideológica, nem à custa da distorção e do apagamento da verdade histórica solidamente estabelecida. No fim de contas seria aí que os manuais “descolonizados” iriam desembocar, pois em tempos lectivos limitados a entrada de uns conteúdos remove outros, como na dança das cadeiras, e porque isto dos manuais traz alguma água no bico.

Querem um exemplo? As pessoas que tanto se queixam de que o negro está omitido em muitos momentos da nossa História, nomeadamente no abolicionismo, cometem a proeza de, no seu discurso, omitir mais e melhor. De facto, ao longo destes cinco anos que já levamos de debate público sobre a questão da escravatura, essas pessoas nunca referiram nem, claro está, valorizaram, aqueles que efectiva e documentadamente levaram a cabo a abolição da escravidão, desde logo Sá da Bandeira. Onde figurará Sá  nos desejados futuros manuais escolares de Cristina Roldão e seus pares? A avaliar pela amostra que temos visto ao longo destes anos, Sá será substituído por uma teoria politicamente correcta que faz dos escravos negros os agentes da sua própria libertação, e vai ser apagado da História como figura irrelevante ou dispensável. Ora, não foi nada disso que aconteceu. Sá da Bandeira teve uma acção abolicionista activa e persistente, desde a década de 1830 até a sua morte, em 1876, e os escravos não foram agentes dessa parte da história pois não houve, nesse período, revoltas escravas nas colónias portuguesas.

No que respeita ao caso da abolição da escravatura em Portugal é isso que deve figurar nos manuais escolares e não Haitis, Nzingas ou Palmares metidos a martelo nessa narrativa. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Público, 12 de Março de 2022).