O mal e a caramunha
O raciocínio foi claramente explicitado por Alexandra Leitão, a líder da bancada parlamentar do PS, no último programa Princípio da Incerteza, da CNN Portugal: “se o Chega não conta” — disse a deputada, — “então quem devia ter sido chamado a formar governo era o Partido Socialista, porque a Esquerda, junta, tem 91 deputados e a Direita, junta, tem 88. Portanto se aqueles 50 deputados (do Chega) não estão lá para nada (sic) (…) há uma maioria de Esquerda na Assembleia da República”. Ou seja, é um raciocínio — chamemos-lhe assim por caridade cristã — que se esquematiza em dois pontos: 1- A AD recusa-se a fazer uma coligação ou acordo de governo com o Chega; 2- Assim sendo, e uma vez que a Direita sem o Chega não tem maioria na Assembleia da República, devia ser a Esquerda a governar.
Miguel Macedo contrariou muito bem e in loco, como se pode ver e ouvir no vídeo, este silogismo coxo, mas talvez se possa dizer mais alguma coisa sobre ele. É que os acontecimentos políticos têm uma história, não têm apenas uma política que possamos torcer como nos apetece e à medida das conveniências tácticas ou estratégicas de cada momento. E a história destes acontecimentos específicos é a seguinte: foi a Esquerda, com destaque para políticos e jornalistas do PS ou próximos dele, que andou durante meses a exigir que Luís Montenegro construísse, em volta do Chega, uma “cerca sanitária”, uma “linha vermelha”, um “interdito” — chamou-se-lhe várias coisas — que impedisse, sob sua palavra de honra ou rígido compromisso político, qualquer eventual futura aliança ou entendimento de fundo entre esse partido e o PSD. Quando, mil vezes perguntado se estava disponível para (ou desejoso de) fazer esse entendimento com o Chega, Montenegro garantiu que não e, inquirido novamente, outra e outra vez, pronunciou o seu famoso “não é não”, houve muita gente de Esquerda que veio sugerir ou quase jurar que ele estaria a mentir como se iria ver, adiante, no pós-eleições.
As eleições fizeram-se em Março, os meses foram-se sucedendo e a Esquerda constatou que Luís Montenegro não mentira. Não houve, de facto, entendimentos com o Chega. Então, dessa constatação, fazendo aquilo a que se chama “pegar na palavra” ou “virar o bico ao prego”, a Esquerda que há dias, no contexto do psicodrama orçamental, falou pela voz de Alexandra Leitão, e que falara logo em Março pela de Rui Tavares, conclui que, sendo assim, tendo Montenegro construído a tal “cerca sanitária” em roda do Chega, então devia ter sido a Esquerda — que, relembre-se, perdeu as eleições — a governar. Ou seja, dito de outra maneira, a Esquerda, com realce para o PS, fez uma exigência política e quando os seus adversários políticos acederam a ela e lhe corresponderam, virou esse cumprimento da palavra dada contra eles e tentou, e continua a tentar com fundamento nisso, arredá-los do poder. Conhecem armadilha mais manhosa do que esta?
A manha disto, a má-fé deste raciocínio, é algo que incomoda e inquieta. Em primeiro lugar porque é imoral que o mesmo PS que quis que Luís Montenegro excluisse o Chega de qualquer convergência, agora o queira penalizar por tê-lo excluído. Em segundo lugar porque, salvo melhor opinião, espelha o que é o actual PS — supondo, claro, que a interpretação que Alexandra Leitão verbalizou no programa Princípio da Incerteza não seja peça única e que haja muitos camaradas seus a perfilhá-la. Ora, que o PS, um grande partido político do centro-esquerda, seja, hoje em dia, liderado por radicais como Santos, Leitão & Companhia é, de facto, bem inquietante e torna o entendimento com o centro-direita muito difícil e cheio de ardis.
A AD deve evitar esses ardis, deve recusar-se a jogar num tabuleiro de xadrês armadilhado e deve continuar a contornar o raciocínio de Alexandra Leitão. É óbvio que a líder parlamentar dos socialistas gostaria de ter poderes para abduzir os 50 deputados do Chega, fazendo-os desaparecer nos confins da nossa galáxia. Gostaria de poder apagá-los da aritmética parlamentar. Mas o “não é não” de Montenegro, com o qual eu pessoalmente concordo, não implica abduções nem aritméticas falsificadas, não exclui nem apaga o Chega da vida política nacional. Esse partido e o seu grupo parlamentar fazem parte da Direita, ainda que não saibamos se o actual não-entendimento com os outros segmentos dessa Direita será para todo o sempre ou apenas para um determinado período de tempo, dependente de conjunturas políticas e de lideranças partidárias, como aconteceu, aliás, com o PS e os partidos à sua esquerda quando, em 2015, no primeiro governo de António Costa, se aliaram ao arrepio do que sempre haviam feito até então.
Ao contrário do que pretende a tese que Alexandra Leitão tenta fazer passar e reactivar, para, de novo, comprometer e entorpecer o PSD, o Chega existe e faz parte da vida parlamentar portuguesa. Está aberto a entendimentos, incluindo entendimentos com a AD porque o “não é não” de Montenegro, se exclui uma coligação de governo, não exclui entendimentos pontuais ou parciais. Mais. Os 50 deputados do Chega não são ilegítimos, inexistentes ou leprosos. Não estão de quarentena perpétua nem respiram por guelras. São cidadãos portugueses legalmente eleitos. Fazem parte do jogo parlamentar quer PS e AD queiram quer não, e têm sido, em vários momentos, aliados e compagnons de route do próprio PS. Fingir que se ignora que assim foi reforça a má-fé do argumento de Alexandra Leitão. Será necessário lembrar-lhe que nesta legislatura o grupo parlamentar socialista já conseguiu fazer aprovar medidas com a convergência ou anuência do grupo parlamentar do Chega? Se valeu para que o PS conseguisse fazer aprovar essas medidas, sem que isso implicasse qualquer aliança entre ele e os socialistas, como não valeria para que a AD possa governar?
Numa situação em que nenhum partido ou coligação tem maioria absoluta, Alexandra Leitão e o Partido Socialista não podem estipular ou impor à AD com quem, e como, ela pode ou não pode confluir, nem de quem, e em que circunstâncias, pode ou deve divergir. Isso cabe à AD definir passo a passo, caso a caso. O PS faz o mal e a caramunha, mas a AD não deve dar para esse peditório nem ir atrás dessa choradeira. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 9 de Outubro de 2024).