O cidadão X e a rainha Njinga

15-05-2023 16:56

Nos últimos anos, as pessoas que querem “descolonizar” a cultura ocidental e o ensino da História, têm gasto rios de tinta a escrever contra figuras proeminentes do nosso passado, figuras que de uma forma ou de outra têm simbolizado os Descobrimentos, a expansão portuguesa no Mundo e o Império que essa expansão trouxe consigo. Em conformidade, o Infante D. Henrique é por essas pessoas apresentado e execrado como o primeiro dos negreiros; Gomes Eanes de Zurara como um dos primeiros racistas; Afonso de Albuquerque como um governador e chefe militar de enormes brutalidade e crueldade; o padre António Vieira como um apologista da escravatura; etc.

Os que apontam erros e violências a estas e a outras figuras que a memória histórica dos portugueses se habituou a honrar e celebrar, não querem apenas demoli-las, querem, também, colocar outras figuras no seu lugar. Por isso, ao mesmo tempo que atacam esses supostamente perversos ou brutais portugueses, os activistas woke tecem loas a líderes de escravos rebeldes e àquelas figuras africanas que ofereceram resistência à expansão portuguesa. Dessas, e em primeiro lugar, sobressai a figura de Njinga a Mbamde, que foi rainha do Ndongo e de Matamba (parte da actual Angola) no século XVII. O seu enaltecimento é muito frequente e disseminado e até Guterres, num discurso proferido em 2019 no contexto do Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e da sua Abolição, veio evocá-la lado a lado com Harriet Tubman, a abolicionista negra norte-americana, e como alguém que, para lutar contra a escravatura, se opôs aos portugueses de armas na mão. Houve mesmo quem, no nosso país, tenha proposto que se erigisse uma estátua a Njinga na cidade de Lisboa.

Subentende-se, portanto, que essa rainha angolana esteja isenta de todas as maldades e crueldades que se verberam às figuras históricas ocidentais e que tanto escandalizam a população woke lusófona e anglo-saxónica. Mas será mesmo assim? Foi essa pergunta que o cidadão X começou a fazer a si próprio. Este cidadão de que vos falo é um jovem escrupuloso e inteligente, que, sendo uma espécie de Lutero woke cheio de inquietações de alma e tendo dúvidas acerca da verborreia politicamente correcta com que os seus compagnons de route lhe enchem os ouvidos, quis tirar tudo a limpo. Desejando saber mais sobre o período histórico em que Njinga viveu, sobre a sua acção e sobre a marca que deixou na história do seu povo e da humanidade, decidiu procurar informação específica e confiável. Como domina mal a língua inglesa e desconfia dos brancos, escolheu uma obra escrita por Linda M. Heywood, uma historiadora negra que lhe disseram — e com razão — ser pessoa sabedora e competente, e cujo livro de 2017 sobre a rainha africana e a conquista portuguesa da região de Angola onde ela viveu está traduzido em português e acessível a qualquer pessoa, como pode ver-se aqui.

Ao fim de vinte ou trinta páginas desse livro o nosso cidadão X começou a surpreender-se e a inquietar-se. Verificou que a escravatura e o comércio de escravos para utilização interna existiam de forma disseminada entre o povo de Njinga, que a posse e venda de escravos em mercados provinciais e centrais eram elementos cruciais da economia do Ndongo e que logo nos primeiros contactos com os portugueses os chefes locais os ofereceram como moeda de troca. Adiante, constatou que, durante o seu reinado, Njinga esteve profundamente envolvida na venda de escravos não apenas aos portugueses, mas também aos holandeses que ocuparam a zona de Luanda entre 1641 e 1648, e percebeu que a rainha aceitava perfeitamente o tráfico transatlântico de escravos desde que o negócio passasse por ela. Percebeu, também, que entre os africanos certos escravos eram marcados fisicamente, uma brutalidade que ele supunha ser uma prática  exclusiva dos europeus.

Sendo pessoa sensível, frontalmente avessa a injustiças e crueldades, o cidadão X ficou profundamente incomodado ao dar-se conta de que os reis do Ndongo tinham a autoridade de mandar sacrificar pessoas e que Njinga o fez assiduamente e, por vezes, com grande crueldade. Eleita rainha, tratou, por exemplo, de eliminar quem pudesse vir a contestar-lhe o poder e um dos muitos assassinados foi um sobrinho de sete anos que matou e atirou ao rio Cuanza. Durante a sua vida a rainha manteve muitos amantes masculinos. Quando, certo dia, um conselheiro lhe fez notar que esse comportamento desrespeitava a memória de seu pai, Njinga mandou matar o filho desse conselheiro à frente dele e, depois, mandou executá-lo, também.

A meio do livro o nosso cada vez mais surpreendido e desapontado leitor constatou que Njinga se ligou a imbangalas — bandos particularmente violentos e que praticavam rotineiramente o canibalismo — e que, quando casou com um deles, adoptou as práticas rituais desses grupos. Foi para cumprir uma dessas práticas e para se tornar líder imbangala, que esmagou um bebé de uma das suas servas num almofariz e espalhou a massa ensanguentada que daí resultara no seu próprio corpo.

Apesar do horror que estes factos despertavam em si, aquilo que mais abalou as convicções do cidadão X foi um episódio passado em 1622 quando Njinga ainda não era rainha e chefiou uma comitiva diplomática do Ndongo a Luanda, para negociações com o governador português João Correia de Sousa. Na audiência com esse governador, constatando que não havia cadeira onde se sentar, apenas um veludo posto sobre um tapete, no chão, Njinga ordenou a uma das mulheres do seu séquito que se pusesse de gatas para que pudesse sentar-se nas suas costas. Finda a reunião, que durou várias horas, e quando o governador, que a acompanhava à porta lhe fez notar que a mulher que a suportara ainda estava de gatas, Njinga replicou que a deixava ali propositadamente pois tinha muitas outras como aquela e uma pessoa com o seu estatuto não se sentava duas vezes na mesma cadeira.

Indignadíssimo com esse episódio, o cidadão X confessou a um grupo de wokes mais velhos que ficara a saber que Njinga tinha muitos escravos e que os tratava mal. Um deles disse-lhe que se queria ser útil à causa seria melhor esquecer essa parte da história porque, se não o fizesse, iria dar força à direita saudosista e lusotropicalista; um outro falou-lhe em “complexidades” e “contradições” próprias das culturas africanas; e um terceiro fez-lhe notar que naquele episódio do tapete não se tratava de uma escrava, mas de uma criada ou serva, o que ainda indignou mais o nosso cidadão X:

— Era uma pessoa livre? Pior, então — declarou. — Muitos camaradas nossos dizem que, em África, a escravidão era diferente da que existia nas Américas. Fiquei, agora, a saber que a liberdade e os direitos das pessoas também eram diferentes, e para muito pior. 

Desapontadíssimo com tudo o que lera e com o tanto que andara enganado, o nosso jovem woke enviou nesse mesmo dia um email a Guterres pedindo-lhe que deixasse de fazer tristes figuras a falar do que não sabia, e avisando-o de que Njinga não era nenhuma anti-escravista, bem pelo contrário. Ultimamente começou a germinar na sua cabeça a intenção de escrever um artigo, sob pseudónimo, a criticar as crueldades da rainha angolana. Espero que não o faça e que, passada esta fase de perplexidade e decepção, consiga elaborar o conhecimento e aceitar que a muito inteligente, politicamente hábil e corajosa Njinga a Mbamde — uma mulher que, no fim da sua vida, se tornou verdadeiramente cristã e que procurou adoçar os seus comportamentos e os do seu povo — era, também, uma bárbara rodeada de gente bárbara e hostil, pois os portugueses e africanos que se lhe opunham estavam longe de ser figuras angélicas ou meninos de coro.

Estou certo de que ao colocar as coisas assim, em perspectiva, no seu contexto, relativizando-as, o cidadão X acabará por entender que as acções e decisões de Njinga — sim, praticou actos de grande crueldade; sim, esteve envolvida na venda de escravos para o tráfico transatlântico — não podem ser julgadas pela tabela dos nossos conceitos e valores actuais e têm de ser compreendidas nas circunstâncias do seu tempo histórico e do universo cultural em que viveu. E pode ser que, uma vez entendido tudo isso, o cidadão X, que, apesar de ingénuo, é um homem inteligente e estruturalmente honesto, conclua que o que é válido para aquela rainha é igualmente válido para todos os personagens históricos, incluindo os portugueses. Se e quando chegar aí, aceitará sem estados de alma que Njinga seja, merecida e compreensivelmente, uma heroína nacional de Angola, e que o Infante D. Henrique, Vasco da Gama ou Afonso de Albuquerque sejam, de forma igualmente compreensível e justa, heróis nacionais portugueses. No dia em que tiver assumido que nenhum deles é irrepreensivel, mas que todos têm de ser compreendidos em função do que eram as práticas dos seus povos e das épocas em que viveram, o cidadão X terá amadurecido e terá deixado com toda a certeza de ser woke. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 15 de Maio de 2023).