O burro de Orwell

19-06-2006 12:29

Imaginem uma universidade americana e um professor de estudos clássicos já na recta final da uma longa e bem sucedida carreira. Imaginem que, intrigado pela continuada ausência de duas alunas cujos nomes constavam da lista mas nunca tinham aparecido, esse professor perguntou à turma se alguém as conhecia: “do they exist or are they spooks”?

A palavra “spook” significa fantasma mas também se utiliza para designar pejorativamente um negro. Por infeliz coincidência, as alunas faltosas eram de origem africana. Tomando conhecimento do que o professor dissera a seu respeito e sentindo-se ofendidas, participaram o facto, acusando-o de racismo. Acrescente-se que já anteriormente uma aluna que frequentava o seu curso sobre tragédia grega se queixara de que as peças por ele escolhidas eram degradantes para as mulheres.

Ainda que as desventuras daquele professor com os ditames do politicamente correcto não fossem inéditas, o barulho causado pelo episódio dos “spooks”, os humilhantes inquéritos, a vociferação dos grupos radicais anti-racistas, a repugnante falta de solidariedade dos colegas, empurraram-no para a demissão. Algo que, diziam alguns, poderia ter sido evitado se o professor tivesse tido a humildade de admitir que errara e pedido desculpa às invisíveis alunas negras. Como, também, poderia facilmente ter evitado a queixa a respeito das tragédias gregas, se em vez de ensinar Eurípedes como sempre fizera, o tivesse embrulhado numa embalagem feminista. Mas, voltando ao episódio de “spooks”, a ironia da situação é que, se bem que isso não fosse muito evidente na sua aparência física — apenas leves traços — o professor em questão era descendente de africanos. Ainda jovem, e como forma de escapar à discriminação racial, esse homem decidira assumir-se como branco, cortara radicalmente qualquer contacto com a família, e nunca mais revelaria — nem mesmo para se defender das acusações de racismo — a sua verdadeira origem. 

Este é o fio condutor da excelente novela de Philip Roth, The Human Stain (2000). Trata-se de ficção, portanto, mas nada melhor do que a novela para chegar à riqueza e complexidade das coisas humanas e, como sabemos, histórias como esta acontecem frequentemente no mundo ocidental. E acontecem porque esse mundo está cada vez mais sob a influência de um programa de higiene linguística e conceptual, que corta através das motivações de cada pessoa e das circunstâncias de cada caso, para fazer vingar, na sua geometria simplista, uma espécie de terapêutica da fala. Desejam os seus promotores que essa terapêutica ponha todas as bocas a debitar coisas impolutas. Enquanto esse asséptico paraíso não chega, os terapeutas permanecerão vigilantes e punirão todos os transgressores, por mais inócuas e triviais que sejam as suas transgressões. Ainda recentemente pudemos ler como, na sequência de algumas apreciações que desagradaram às feministas, o presidente de Harvard, Lawrence Summers, foi levado a demitir-se.

O politicamente correcto não é novo, como também não é nova a caça às bruxas que lhe está associada. O que é novo é o carácter ultra-invasivo que agora assume e que procura codificar tudo, blindar tudo, de modo a impedir que alguma minoria possa ser vítima de qualquer trauma ou insulto. Daí a catadupa de recomendações e interditos, que vão desde o tipo de frases que não convém usar num emblema clubista — para, por exemplo, não ofender os índios — até ao boicote de aparelhos que, por não se adaptarem a todos os seres humanos, são considerados discriminatórios para alguns deles — os muito baixos, os mais leves, etc.

Em sociedades livres, como as nossas, há diversas formas de fazer frente a este absurdo e uma delas passa pelo combate de ideias. Nesse plano, tem-se privilegiado uma linha de afrontamento que procura acantonar o politicamente correcto claramente à esquerda. Os que a perfilham partem de um diagnóstico — acertado — que pode resumir-se em poucas palavras: muitos dos que viveram o espírito libertário, feminista, emancipacionista, contestatário, nas décadas de 60-70, permaneceram fiéis a esse ethos radical. Pela sucessão natural das gerações, essa gente encontra-se agora em lugares de influência e está em condições de realizar aquilo que garantia um dos hinos da época: “we can change the world, rearrange the world”. No fundo, é como se algo inoculado há 40 anos tivesse começado paulatinamente a subverter as coisas por dentro, e por acção da geriatria hippie que acabou por dominar nas universidades, na administração, na comunicação social. Ironicamente, a retórica que prometia — e promete — maior abertura, diversidade e pluralismo, acabou por descambar na opressão, na intimidação e no policiamento da expressão. A geração do fervoroso “é proibido proibir” acabou por patrocinar um igualmente fervoroso apelo à censura.

Mas essa é outra questão. Aqui, o que importa sublinhar é que muitos dos que afrontam o politicamente correcto o vêem como uma expressão de um eclectismo de esquerda cujo objectivo último residiria na destruição da moralidade e da sociedade burguesas. Daí decorre uma linha de ataque ideológico que tem sido assumida sobretudo pela direita, o que é perfeitamente compreensível. As ideologias funcionam por contraposição e a presença de vários elementos de esquerda no discurso multiculturalista e nos mandamentos do politicamente correcto estimula a produção de anti-corpos no lado oposto, e opera a bipartição do quadro do debate em dois campos antinómicos.

A meu ver um caminho de bipolarização do debate estreitará a frente de batalha e não será particularmente fértil. Independentemente da sua proveniência original e principal motivação, o discurso politicamente correcto foi passando, por osmose, para todas as áreas do espectro político, e a generalidade das pessoas terá dificuldade em vê-lo como uma maquiavélica manobra para subverter a nossa sociedade. O mais provável é que o considerem apenas como uma tentativa de impor limites à linguagem e à expressão de pontos de vista, de forma a evitar terminologias que possam ferir a susceptibilidade dos outros. Tentativa que, no plano prático, teria a vantagem de contribuir para corrigir as injustiças do passado e de impedir que alguém possa ser amesquinhado em virtude da raça, da orientação sexual ou do género. Naturalmente, não verão nisso nada que justifique qualquer ataque, pelo contrário.

Acresce que, como sucede com todas as ideologias que fundem moralismo e radicalismo, o politicamente correcto assenta numa base moral que embaraça o opositor, e que tende, pelos mecanismos de contraposição, a empurrá-lo para terrenos indefensáveis. A verdade é que o racismo existe, há mulheres cujos direitos não são respeitados, homossexuais que são maltratados. Essas coisas acontecem, não são meras invenções do politicamente correcto. São realidades injustas que persistem aqui ou além, não obstante os avanços feitos em termos de liberdade e de direitos humanos. O facto de existirem significa que o debate a respeito do politicamente correcto tem de ser feito num terreno armadilhado do ponto de vista moral. Sendo um discurso e uma prática a favor de gente que é ou foi vítima, que é ou foi marginalizada, brutalizada, injustiçada, enganada, gente que está em minoria ou numa posição de inferioridade, o politicamente correcto tem, manifestamente, a virtude do seu lado. Qualquer crítica que se lhe faça pode dar a sensação — que aliás, os seus promotores imediatamente exploram — de que se está contra essa gente. Nessas condições, a linha de fronteira entre o adequado e o inadequado é finíssima, e qualquer passo em falso nos pode arrastar para onde não queremos.

O equilíbrio é, portanto, essencial. Ora, no calor de um debate que envolve emotividade e preconceitos, esse equilíbrio é difícil de manter. O ideal seria poder mudar o terreno e o objecto do confronto de ideias, até porque a falsidade do politicamente correcto não está no campo moral nem nas vítimas, cujo sofrimento pode ser concreto, e com as quais podemos facilmente entrar em empatia. O que é falso, ou deformado, ou desmesurado, é o aproveitamento ou a exaltação que o politicamente correcto tende a fazer dessas vítimas e do seu sofrimento. Destrinçar uma coisa da outra, as vítimas do discurso sobre as vítimas, é, por isso, fundamental. Isto significa que o ataque ao politicamente correcto deve fazer-se pelo seu calcanhar de Aquiles, que é o radicalismo, o excesso, o que exige a exposição desse excesso e um laborioso aprofundamento da explicação. É improvável que o politicamente correcto possa subsistir nessa forma, durante muito tempo, se o seu radicalismo for constantemente trazido à superfície.

Vi há pouco tempo um debate transmitido pela televisão francesa em que alguém, a propósito dos aspectos positivos e negativos do colonialismo, lembrava que, apesar de tudo, os franceses tinham deixado nas suas colónias uma série de estruturas como hospitais ou estradas, que eram manifestamente resultados positivos da história colonial francesa. Foi imediatamente classificado como racista, e bombardeado com as seguintes perguntas: está a negar que os africanos também podiam ter construído estradas e hospitais? Está a insinuar que não têm capacidade para o fazer?

É evidente que este tipo de contraposição expõe à vista de todos o flanco radical e insustentável do politicamente correcto. Todos os homens têm as potencialidades inerentes ao humano. Mas, por razões que a história explica, certos homens descobriram a América ou viajaram até à Lua, enquanto outros permaneceram nas suas florestas tropicais ou nos seus desertos. Certas sociedades avançaram no sentido da complexidade e da sofisticação política e tecnológica — com tudo o que isso tem de bom e de mau — enquanto outras rejeitaram esse caminho. É por isso que vir acentuar que todos podiam construir estradas ou hospitais, que todos tinham capacidade potencial para descobrir continentes ou planetas, é a tal ponto absurdo, a tal ponto condicionado pelos preconceitos do multiculturalismo, que roça a palermice. Como é óbvio, o que é historicamente importante não é que todos os homens tenham capacidades mas que apenas alguns as tenham exercido e desenvolvido de determinada maneira, o que, num mundo competitivo como é o mundo humano, lhes deu uma vantagem relativa crescente. Se o Ocidente passou a dominar esse mundo tal não decorre do homem branco ser superior ao homem preto (ou de qualquer outra cor) mas sim do facto de ter havido entre os brancos muitos Colombos, muitos Pasteurs, e do fervilhar de iniciativas ter sido canalizado num certo sentido.

Para dizer tudo isto é preciso ponderação e tempo para explicar, o que nem sempre é fácil num debate. Mas esse parece-me ser o mais eficaz caminho de combate ao politicamente correcto pois num mundo de conhecimento e de informação, a ignorância torna-se menos atrevida e o radicalismo, seu parente próximo, encontra menos campo para se espraiar. Ora, esse caminho interessa a todos os que não querem que uma espécie de polícia do pensamento lhes venha cercear a liberdade de expressão. 

Ignorância, politicamente correcto, coacção, polícia do pensamento, eis uma conjugação de palavras que evoca Orwell. Em Animal Farm os porcos que dominam a quinta reescrevem as regras, convertem os dissidentes heróicos de outros tempos nos traidores de agora, estipulam o que é correcto dizer-se e o que deixou de o ser, coagem e intimidam todos os que deles discordam. Mas, só podem fazê-lo porque a generalidade dos animais da quinta não tem memória nem conhecimento básico que lhe permita ler o presente. O único que parece saber do que se passa, o burro, optou por não se pronunciar. Tal como em Animal Farm, o politicamente correcto só poderá avançar se fizermos como o burro de Orwell e nos mantivermos silenciosos ou indiferentes perante os assaltos à liberdade de expressão - João Pedro Marques (publicado inicialmente in Atlântico, nº 17, Agosto de 2006).