O burquíni mental

23-08-2016 12:05

No momento em que escrevo são já 16 as cidades e estâncias balneares francesas que decidiram proibir o uso de burquíni nas suas praias. Essa proibição incomodou várias pessoas que deram conta desse seu incómodo em artigos publicados na imprensa nacional e estrangeira.

Para essas pessoas - que aqui designarei por "permissivos" - a decisão de proibir o uso do burquíni nas praias é uma medida histérica, xenófoba e persecutoriamente anti-islâmica. Muitas delas são avessas ao burquíni mas confessam-se ainda mais avessas a autoridades públicas que não respeitem a liberdade de mulheres adultas poderem tomar decisões sobre si próprias. Se as muçulmanas decidem usar burquíni, então estão no seu direito e ninguém tem nada com isso. Há mesmo quem faça raciocínios e analogias provocatórias e pergunte o que aconteceria se as muçulmanas fossem para as praias que proibiram o burquíni com fatos de surf ou de pesca submarina. Seriam multadas? Seriam expulsas? Este raciocínio e estas analogias poderão convencer à primeira vista, até porque apelam a princípios como os da liberdade individual e da liberdade de escolha que dizem muito a todos nós. Mas enquanto põem o seu foco aí, os "permissivos", como hábeis ilusionistas, deixam completamente no escuro os aspectos da segurança e ordem públicas, e são sobretudo esses que estão aqui em causa. De facto, muitos deles esquecem-se de referir que as medidas francesas têm que ver com o receio de confrontos. E não se trata de receios fantasmagóricos ou imaginários criados por mentes paranóicas e islamofóbicas. São medos de coisas concretas e já verificadas.

De facto, no passado dia 13 de Agosto, em Sisco, na Córsega, registaram-se conflitos entre muçulmanos e um grupo de jovens corsos depois de um turista ter tirado fotografias a mulheres que tomavam banho de burquíni - coisa que a família das ditas não apreciou. Consta, aliás, que as famílias muçulmanas quiseram delimitar a zona onde estavam e apropriar-se dessa parte da praia para seu uso exclusivo - o que os corsos não apreciaram. A violenta rixa que daí decorreu meteu pedras, garrafas, armas brancas e arpões, saldou-se por 5 feridos hospitalizados, vários detidos, alguns veículos incendiados, um fogo na vegetação circundante, o corte da circulação rodoviária e exigiu a presença de cerca de 100 polícias para repor a ordem pública. Na sequência destes eventos uma multidão vociferante e ameaçadora de várias centenas de corsos dirigiu-se ao bairro onde viviam as famílias muçulmanas envolvidas na rixa, gritando "às armas" e "esta é a nossa terra", e voltou a ser necessária a polícia para proteger os muçulmanos e serenar os ânimos. No dia seguinte o presidente da Câmara de Sisco proibiu o burquíni.

Os "permissivos" omitem esta e outras preocupações idênticas nas demais autarquias proibicionistas. Para além disso, fazem tábua rasa do clima tenso que se vive em França, um país que nos últimos anos tem sido alvo de mortíferos ataques de extremistas islâmicos. Para mim é perfeitamente compreensível que nesse país e nesse clima altamente electrificado certas peças de roupa e/ou certos símbolos possam ser objecto de interdição temporária, visto serem, neste contexto, uma ameaça potencial para a ordem pública e para a segurança dos que frequentam as praias, incluindo os muçulmanos - ou sobretudo eles. E é justamente porque muito do que se passa nesta área remete para o plano dos símbolos e seus significados que a situação provocatória imaginada por alguns "permissivos" não faz sentido (a não ser o sentido pueril das provocações gratuitas): se as muçulmanas aparecessem nas praias de que falamos com fatos de surf ou de pesca submarina ninguém as expulsaria nem multaria pela simples razão de que os fatos em causa não constituem um rastilho para situações de confronto - ou seja, não põem em causa a segurança pública.

Em suma, ao desligar os factos do seu contexto os que se indignam com a proibição do uso do burquíni afastam-se de vários parâmetros do raciocínio justo e equilibrado. Para fazer vingar a ideia de que essa proibição é um caso de histérica xenofobia anti-islâmica - e apenas isso -, pegam nos acontecimentos, tiram-lhes a fatia que lhes dava um sentido securitário e escondem-na nos seus burquínis mentais. Assim não vale - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez no Diário de Notícias, 23 de Agosto de 2016).