O 11 de Setembro e a hierarquia do horror

30-09-2006 12:32

Passaram recentemente 5 anos sobre o apocalipse do 11 de Setembro e o acontecimento foi evocado em boa parte do mundo. Com a evocação, reapareceram em pleno as teorias da conspiração e reacendeu-se o debate entre os que sublinham a especificidade e gravidade do ocorrido e os que relativizam a tragédia, lembrando outras equiparáveis ou piores.

Foi no contexto desse debate que Clara Ferreira Alves (Expresso, 9 de Setembro, 2006) veio recordar-nos o bombardeamento de Dresden e os ataques atómicos a Hiroxima e Nagasáqui, durante a 2ª Guerra Mundial. Trata-se de um paralelo arriscado (alguns dirão despropositado). Em primeiro lugar porque há diferenças substanciais entre as baixas causadas no contexto de uma guerra e as que resultam de um inesperado ataque terrorista sobre populações totalmente indefesas. Depois — e mais importante — porque cada tragédia é específica e, de certo modo, incomparável. O sofrimento das pessoas que morreram em Dresden terá sido enorme. Mas é impossível garantir que tenha sido maior ou mais intenso do que o de outras vítimas, noutros tempos e noutras partes. Não há escala de Richter do sofrimento humano. Assim, e ainda que a utilidade de um tal exercício seja duvidosa, os paralelos entre tragédias só farão sentido se forem pensados em termos estritamente quantitativos. Foi nesse campo, aliás, que Clara Ferreira Alves tentou situar-se — 3 mil mortos nas torres gémeas; talvez 300 mil em Hiroxima e Nagasáqui — logo acrescentando que não fez essa analogia para estabelecer uma equivalência da morte e da destruição mas apenas para nos lembrar “que contamos melhor os nossos mortos que os mortos dos outros” e que “foi a América o único país, até hoje, a utilizar armas nucleares em tempo de guerra”.

Esta associação de ideias visa especificamente os povos ocidentais. Como a articulista sabe, todas as culturas são fortemente etnocêntricas na sua relação com a morte e todas contam melhor os mortos próprios do que os dos estrangeiros. Dito isto, é muito provável que durante boa parte da sua história o Ocidente — que, ao mesmo tempo que exportava o domínio em larga escala exportava também o humanitarismo — tenha sido o lugar da terra onde menos mal se contaram os mortos dos outros, certamente melhor do que no mundo islâmico ou na China, que durante muito tempo ignoraram olimpicamente o que se passava para além das suas fronteiras e áreas de influência.

Seja como for, o ponto a reter é que a parcialidade na contabilização das baixas é universal. Assim, o problema mais interessante que decorre da comparação proposta por Clara Ferreira Alves não é tanto o de saber porque razão contamos melhor os nossos mortos do que os dos outros mas por que motivo terá escolhido, entre os milhares de exemplos passíveis de ser comparados com o 11 de Setembro, precisamente os casos de Hiroxima, Nagasáqui e Dresden. Terá sido por serem relativamente recentes e especialmente mortíferos? Nesse caso porque não exemplificar com a conquista de Nanquim, em 1937, na qual as tropas japonesas terão massacrado 200 a 300 mil chineses? Clara Ferreira Alves preferiu exemplos em que, curiosamente, os causadores da hecatombe foram norte-americanos e britânicos. E talvez o tenha feito porque aquilo que discute não é, em bom rigor, a morte dos outros mas — subtil diferença — a morte que nós causámos aos outros, um tema muito caro ao Ocidente. Parece, portanto, que não só contamos melhor os nossos mortos como gostamos de recorrer a exemplos que destacam e acentuam as tragédias que causámos.

A escolha desse painel exemplificativo resulta, por vezes, da bissectriz entre a proximidade e o desconhecimento. A história ocidental é-nos familiar e está cheia de tiranos, de abusos e de tragédias. Mas quais não estarão? O que sucede é que conhecemos geralmente melhor a história do Ocidente do que as da Ásia Interior ou da África Central. Sabemos mais sobre as violências dos conquistadores espanhóis no Novo Mundo do que sobre o currículo sangrento dos senhores do Turquestão ou do Chade. Daí advém uma certa tendência para recorrermos a uma panóplia de tragédias bem referenciadas no nosso quadro cultural — as Cruzadas, a destruição dos povos e culturas ameríndias, o tráfico de escravos, o colonialismo, etc. — tendência essa que nos vai empurrando involuntariamente para uma constante auto-recriminação.

Mas, outras vezes, a escolha dessa panóplia de tragédias é motivada por razões de natureza ideológica. De facto, o que está frequentemente em causa na contabilidade comparada entre o 11 de Setembro e outras tragédias é um ataque aos valores e à história do Ocidente. Trata-se de um conhecido jogo que tenta, por um lado, desvalorizar as realizações dos povos ocidentais — com o argumento de que teriam sido conseguidas à custa de outros, ou motivadas por sórdidos interesses económicos — e que, por outro lado, procura sublinhar as catástrofes e os horrores que causaram. É esta segunda vertente que faz com que os seus crimes e violências sejam apresentados como mais hediondos e mais graves do que todos os outros, um superlativo trágico que permite enfatizar os traços agressivos, destrutivos e maquiavélicos da relação do Ocidente com o mundo exterior.

Uma visão menos engagée e mais global permitiria perspectivar melhor as coisas, não para as desculpar — não é essa a função da história comparada — mas para fazer compreender que, infelizmente, pouco há de superlativo nesses acontecimentos trágicos da nossa história ocidental e que aquilo que é recorrentemente apresentado como um zénite da agressividade ou desumanidade é, no fundo, apenas mais um triste exemplo das muitas e grandes tragédias de que o passado da humanidade é tecido.

Tomemos o exemplo das Cruzadas. Como é sabido, em finais do século XI, a cristandade ocidental invadiu o Próximo Oriente. Correspondendo a motivações diversas, uma multidão de militares, clérigos, pedintes, bandoleiros, prostitutas, místicos, deu corpo a uma espécie de peregrinação guerreira — alimentada pela chegada continuada de reforços — que levaria à conquista e posse de vários territórios. Com avanços e recuos, os cruzados mantiveram uma presença na região até finais do século XIII e essa presença custou muitos milhares de vidas ao mundo muçulmano. Se bem que a matança tenha sido, naturalmente, recíproca, o papel de agressor desempenhado pelos povos da Europa Ocidental bem como as diversas atrocidades que levaram a cabo (nomeadamente, o massacre de Jerusalém) marcaram negativamente a memória do acontecimento.

Essa memória negativa tem sido frequentemente evocada, nos últimos anos, para ilustrar a presumida suprema violência ocidental para com os povos islâmicos. Trata-se de uma óbvia descontextualização que alguns procuram contestar lembrando que os muçulmanos haviam sido os primeiros agressores. O que, apesar de ser verdade, os conduz a uma argumentação em espelho, a uma dialéctica acusatória circular, que não leva longe. A contextualização que me parece útil é de outro tipo.  

Ainda que visassem a Terra Santa, as Cruzadas foram mudando de metas e, na prática, não se dirigiram exclusivamente contra os muçulmanos. Na verdade, atingiram quase tudo o que teve a infelicidade de lhes aparecer pelo caminho, independentemente da língua ou do credo. Ainda que isso poucas vezes se refira, as Cruzadas começaram a matar na Europa. Os judeus alemães, as populações cristãs da Hungria e de muitas regiões balcânicas — recorde-se que a própria Constantinopla foi conquistada e saqueada em 1204 — sentiram, na carne, a brutalidade de multidões semi-anárquicas que iam pilhando e matando à medida que avançavam para a Terra Santa.

Por outro lado, a memória usual das Cruzadas, virada para a culpabilização do Ocidente, ignora ou omite o que se passou na mesma época e no mesmo espaço. Enquanto cruzados e sarracenos lutavam na Síria e na Palestina, no extremo oposto da Ásia os Mongóis iniciavam a sua blitzkrieg do terror. Em poucos anos a máquina militar mongol atingiria a Europa Central e Oriental, e cairia com toda a força sobre o mundo islâmico. Durante boa parte do século XIII, esse mundo, do norte da Índia à Turquia e a Gaza, esteve sob as armas dos Mongóis que destruíram dezenas de cidades e massacraram metodicamente as populações urbanas ou rurais. Em certos casos, como dizem as fontes árabes, os Mongóis até mataram gatos e cães. Uma das inúmeras tragédias ocorreu em Bagdade, a sede do Califado, que foi pilhada e incendiada em 1258, calculando-se que, só aí, os conquistadores terão trucidado cerca de 90 mil pessoas.

O cômputo das mortes é difícil de fazer — os números medievais são sempre falíveis — mas é seguro que a acção militar mongol foi muito mais destruidora de vidas e bens materiais do que as Cruzadas. O que se compreende facilmente. Ao contrário das hostes cristãs, que procuravam assegurar um modo de subsistência na Palestina, os Mongóis, sendo nómadas, demonstravam um profundo desprezo pela vida sedentária e não sentiam particular necessidade de garantir a sua existência. Por isso arrasavam campos de cultivo para os converter em pastagens, desviavam o curso de rios para submergir cidades, ou massacravam populações inteiras, dispensáveis para o seu modo de vida veicular.

A memória das invasões Mongóis tem, naturalmente, um grande peso no Médio Oriente e quem seguiu com atenção os preliminares da recente guerra no Iraque, recordar-se-á, por certo, da forma como Saddam Hussein procurou equiparar o iminente ataque americano à conquista mongol, o que diz bem da carga que essa conquista ainda tem na cultura iraquiana. Em contrapartida, tem escassa importância no nosso universo cultural e quase nunca aflora o espírito dos que gostam de apontar o dedo às tragédias exemplares protagonizadas pelos povos ocidentais.

Poderá pensar-se que fui buscar exemplos muito antigos e que, na Era Contemporânea, os norte-americanos e europeus, graças à sua superioridade tecnológica, conceberam formas particularmente horríveis e eficazes de matar, formas cujo efeito, como sucedeu com as bombas atómicas de Hiroshima e Nagasáqui, se prolongam no tempo e no espaço e que são claramente mais nocivas e criminosas do que tudo o que a mente humana concebeu. Mas esse é um raciocínio superficial e ingénuo. As catástrofes de longa duração produzidas por actos de guerra não são uma característica exclusiva do século XX. Pense-se, por exemplo, na Peste Negra que em meados do século XIV assolou a Europa, ceifando, ao que tudo indica mais de um terço da sua população. A doença permaneceria, aliás, em estado endémico recrudescendo de tempos a tempos. Dir-me-ão que esse exemplo não colhe porque, nesse caso, se trata de baixas involuntárias ao passo que os mortos causados pelas bombas atómicas resultaram de uma actividade inteiramente consciente. Mas será assim? Na verdade, a Peste Negra propagou-se pela Europa Ocidental a partir da Crimeia e em consequência dos métodos de guerra biológica aí conscientemente praticados — catapultavam-se os cadáveres dos empestados para o interior das cidades sitiadas a fim de espalhar a peste entre o inimigo.

Em suma, a longa e triste história da guerra e da perversidade humanas poderá permitir o estabelecimento de uma hierarquia quantitativa do horror mas nada indica que os povos ocidentais assumam os primeiros lugares nesse macabro hit parade. O facto de os colocarmos cronicamente nessa posição resulta de uma opção ideológica, de uma falta de termos de comparação ou, como é manifestamente o caso de Clara Ferreira Alves, de ambas as coisas. Recorde-se que a articulista, esquecida dos números que ela própria avançara, afirmou que Hiroxima e Nagasáqui foram “o maior genocídio da história da humanidade”. Confesso não saber o que mais me impressiona numa frase como esta, se o grau de má-fé, se o nível de desconhecimento acerca da referida história da humanidade - João Pedro Marques (publicado inicialmente in Atlântico, nº 20, Novembro de 2006).