Neo-ideologia

16-04-2013 07:55

Um estudo do Bundesbank concluíu que os espanhóis e os italianos são mais ricos do que os alemães. Soube, ainda antes de passar do cabeçalho para o corpo da notícia, que o tal estudo era uma fraude, uma artimanha mental qualquer que tinha torcido os números, ou seleccionado os critérios, iluminando umas coisas e ofuscando outras, para que o resultado final fosse aquele. Conheço os países em causa, ando a par do que lá se passa, e há coisas que são demasiado evidentes para serem simples ilusões. Claro que há momentos e situações em que os homens acreditam erradamente no que os seus olhos vêem, mas o bom senso e a experiência de vida dizem-me que esses enganos são raros: não há falsos geocentrismos a cada esquina nem legiões de Galileus para os desmascarar.

E, de facto, ao ler a notícia até ao fim, confirmei tudo o que tinha antecipado. O estudo mete no mesmo saco coisas diferentes e de épocas diferentes, o que distorce o quadro comparativo e a validade das conclusões. Um exemplo apenas: o valor das casas que foi tido em consideração para calcular o património das famílias espanholas foi o que tinham em 2008, quando hoje em dia — e era sobre a actualidade que o estudo incidia — o seu valor é substancialmente mais baixo. Ou seja, estamos perante mais um daqueles estudos feitos a pedido e nos quais se martelam impiedosamente os números até eles dizerem aquilo que nós queremos que digam.

 Esse método da martelagem é tão praticado na Alemanha como cá. Precisamos de atacar o ensino público? Fazemos um ranking que nos mostra que as escolas privadas obtêm melhores resultados do que as públicas (omitindo, pudicamente, as diferentes proveniências sociais e culturais dos respectivos alunos e os handicaps que tais proveniências implicam). Queremos dizer que os reformados recebem pensões altíssimas, para mais facilmente as cortar? Um qualquer organismo de Estado divulga números sobre reformas douradas, omitindo que 90% dos reformados têm reformas de miséria. As sociedades modernas desenvolveram esta forma habilidosa de manipular, embrulhando essa manipulação em “tecnologia” e em “cientificidade”. Isto não seria especialmente nocivo e venenoso, se fosse transparente. Mas é minha convicção que muita gente não percebe que grande parte do que lhes está a ser apresentado como sendo rigoroso, fiável, científico, mais não é do que ideologia política.

Os expoentes máximos e maiores cultores desta arte — os ideólogos deste novo tempo —, são economistas, banqueiros, homens de negócios bem sucedidos, que, através de opiniões e, sobretudo, de previsões, tentam actuar sobre os factos previstos. Alguns fazem-no de boa fé, outros nem por isso. Todos funcionam, consciente ou inconscientemente, como puros agentes políticos encapotados. Por isso, e voltando ao Bundesbank, não fiquei admirado ao saber que, apesar das fragilidades metodológicas, o seu estudo foi amplamente divulgado na Alemanha, com o óbvio intuito de pressionar Angela Merkel para que defenda os interesses dos contribuintes germânicos e não ceda às lamúrias dos países europeus do sul, que criticam a sua suposta falta de solidariedade.

Dizia-se, ainda não há muito, que as ideologias políticas tinham morrido, e alguns congratulavam-se por isso, considerando que elas só confundiam o que verdadeiramente interessava: a gestão eficaz da coisa pública. Mas, na verdade, as ideologias não morreram, apenas mudaram de aspecto e de linguagem. Escondem-se, actualmente, atrás de rankings, de estudos, de comparações, que vêm dar-nos resultados e certezas que, lá no fundo, sabemos serem falsas ou parciais. Neste admirável mundo novo, onde tudo se manipula — e se deprecia em conformidade —, a ideologia vem quase sempre coberta por uma bela capa dourada de quantificação e de certificação “científica” para parecer que é uma coisa séria e rigorosa. Não é. É apenas neo-ideologia e novilíngua do século XXI, qualquer coisa a meio caminho entre estatística e propaganda, e que visa aplainar o caminho das decisões políticas futuras. Não espanta que o confronto ideológico se trave muitas vezes em torno dos números e das “narrativas” que os suportam - João Pedro Marques (publicado pela primeira vez in Jornal i, 15 de Abril de 2013).