Não, Portugal não foi a maior potência esclavagista

21-07-2018 08:15

O historiador Miguel Cardina afirmou, em recente entrevista ao DN, que Portugal foi "a maior potência esclavagista da modernidade" e que isso não tem sido devidamente considerado no país. Devo dizer ao meu colega que está enganado. Eu não sei em que fonte ou fontes Miguel Cardina se apoiou para afirmar o que afirmou. Admito que tenha recorrido ao site The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Se foi esse o caso, não terá visto com suficiente rigor. As tabelas do referido site, referem-se exclusivamente ao tráfico transatlântico de escravos, e para além de deixarem de fora, claro está, a parte africana do negócio escravista, reportam os números de Portugal e Brasil, em conjunto. Já chamei a atenção para isso em artigo anterior, que terá passado despercebido a Miguel Cardina.

Mas há um segundo aspecto do seu engano que é muito mais importante. É que para além de não ter visto com suficiente rigor ao perto, Miguel Cardina também não terá visto bem ao longe. Deixou-se encadear, imagino eu, pelos números das tabelas e encadeou-nos inadvertidamente a nós. É que a história do tráfico de escravos e da escravidão não se resume ao tráfico transatlântico nem é ele que por si só cria uma "potência esclavagista". Não estou a pôr em causa, de modo algum, as tabelas do Trans-Atlantic Slave Trade Database, que são muito úteis, e que conheço desde a década de 80, época em que David Eltis, o seu criador, mas enviava pelo correio, pois ainda não estavam online. Mas as tabelas estão longe de dizer tudo. Referem-se apenas ao tráfico transatlântico e não nos falam, por exemplo, do que se passava em terra. Na verdade, no Ocidente, a maior potência esclavagista, se essa expressão tem algum sentido ou algum interesse, não foi Portugal, mas sim os Estados Unidos. É verdade que os Estados Unidos proibiram o tráfico transatlântico de escravos em 1807 e que, nos estados do norte, começaram
a abolir a escravidão ainda antes disso, logo em 1777. Os estados do sul, porém, mantiveram-na até à derrota na guerra civil, em 1865, e, se bem que já não importassem escravos por mar a não ser de forma residual e ilícita, produziam-nos e comerciavam-nos internamente, através daquilo a que se chama breeding, isto é, a reprodução biológica. Por isso a sua população escrava cresceu continuamente: em 1800 os Estados Unidos tinham quase 900 mil escravos, mas em 1820 esse número já subira para mais de 1,5 milhões, viria a atingir os 3,2 milhões em 1850 e quase 4 milhões em 1865, convertendo o país no maior reservatório escravista no hemisfério ocidental. O Brasil da época da independência teria cerca de 1,2 milhões. E friso que estou apenas a falar do hemisfério ocidental porque havia outras grandes concentrações de escravos na Ásia e em África onde, por exemplo, e segundo Paul E. Lovejoy, o califado de Sokoto, cujo território englobava o norte da Nigéria e dos Camarões e o sul do Níger, teria provavelmente perto de 4 milhões de escravos, isto é, tantos como os Estados Unidos e mais do que Brasil e todas as colónias das Caraíbas no seu conjunto.

Ou seja, Portugal não foi nem de longe nem de perto "a maior potência esclavagista". De qualquer modo, a questão mais interessante no actual contexto não é a de saber quem teve mais ou menos escravos e quando e em que circunstâncias, mas a de saber por que razão se assiste presentemente em Portugal a esta sanha acusatória. Por que razão há este afã em apontar o dedo e em agravar e tornar artificialmente mais pesado o que já pesa na história do país. Por que razão, como perguntava Eduardo Lourenço, há esta necessidade de crucificar o passado português. A razão é ideológica e política. Por isso, e ainda que o que escrevi atrás sejam verdades facilmente comprováveis, não tenho ilusões acerca da capacidade de penetração dessas verdades em certos sectores onde, como tem sido manifesto, a informação não entra nem passa. Há pessoas, dentro e fora da academia, que são impenetráveis a um conhecimento actualizado
sobre história da escravatura porque usam uma couraça chamada ideologia. Ideologicamente
falando, e no que se reporta especificamente a esta área da História, essas pessoas habitam um edifício rígido, estanque, feito de dogmas e de certezas absolutas. Se se lhes mostra, com conhecimento apoiado num conjunto ponderado de documentos e numa bibliografia extensa, que estão enganadas e que o seu rei vai nu, o edifício pura e simplesmente desmorona-se. Daí que prefiram não ver, não ouvir nem reconhecer. Há, ainda assim, que continuar a tentar mostrar o que aconteceu e como aconteceu, mais para esclarecer a opinião pública do que para tentar
convencer quem não quer ser convencido. É inútil mostrar a história a quem está barricado na ideologia. 

No tempo de Salazar a propaganda do regime fazia dos antigos portugueses os melhores do mundo, heróis sem defeito nem mácula. Agora, os combates ideológicos da extrema esquerda politicamente correcta empurraram-nos para o lado oposto e os nossos antepassados passaram a ser os piores do mundo, os facínoras por excelência, os inventores da pior das escravaturas. As criaturas que, seguindo o terrível exemplo de Afonso de Albuquerque, queimaram metade da terra e capitanearam metade dos tumbeiros (navios negreiros). Será possível termos
uma visão equilibrada e sobretudo contextualizada do passado?

PS: Quanto à ideia de que o envolvimento de Portugal na escravatura tem sido "desconsiderado" no país, julgo que Miguel Cardina também se engana. Volto a afirmar que o assunto foi discutido na esfera pública e nas Cortes em vários momentos do século XIX, ou seja, no momento em que a escravatura ainda existia e em que a questão se punha. A escravatura já não existe, felizmente. É, agora, um objecto da História. Desde 1979 que vários historiadores (entre os quais me incluo) escreveram sem paninhos quentes sobre o envolvimento de Portugal na escravatura e na sua abolição. É apenas questão de os ler. Dará algum trabalho e demorará algum tempo porque são milhares de páginas. Ao contrário do que Miguel Cardina disse não há qualquer défice de reflexão crítica sobre o assunto - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Diário de Notícias, 21 de Julho de 2018).