Lagos: o museu, o arqueólogo e eu

17-09-2025 11:15

Critiquei recentemente o Museu de Lagos pela latitude que tem dado a projectos woke sobre escravatura e colonialismo, e o arqueólogo Luís Raposo, ex-director do Museu Nacional de Arqueologia, sentiu necessidade de vir contestar o que escrevi e defender o museu algarvio, apresentando as coisas segundo um esquema tripartido: de um lado da disputa cultural estariam os woke; do outro lado, os defensores da “epopeia civilizadora portuguesa”; no meio, virtuosamente no meio, o Museu de Lagos a quem Raposo deseja êxito e que se mantenha nessa suposta linha intermédia.

Mas há uma outra linha que o seu esquema deixou de fora: a dos que conhecem e respeitam a História, entendida aqui como actividade intelectual virada para a descoberta e compreensão do passado sem intenção de o aplaudir ou condenar. Luís Raposo deu-me a subida honra de mencionar o meu nome como sendo o de alguém que se evidencia pela “sanha anti-woke” e por ser um dos defensores “da epopeia civilizadora portuguesa”. Mas aí, como diria Chico Buarque, “a notícia carece de exactidão”. Sem rejeitar, longe disso, a epopeia civilizadora portuguesa e reafirmando, como português que sou, o orgulho que tenho no meu país, eu pertenço a uma outra categoria que Luís Raposo não referiu e é nessa qualidade que tenho escrito nos jornais. De facto, eu sou especialista em história da escravatura, algo que Raposo manifestamente não é. Revela, aliás, sérias lacunas nessa área do conhecimento, o que é lamentável porque, com as suas mal-informadas opiniões, contribui para perpetuar, na memória colectiva, falsidades e interpretações erradas.

Passo a exemplificar. Escreveu Luís Raposo o seguinte: “Todo o elã nacionalista dos Descobrimentos conseguiu em Lagos incorporar o ‘mercado dos escravos’. E até a descrição pungente de Zurara sobre a revoltante condição de uma ‘carga’ de azenegues, feitos escravos, com o Infante a supervisionar tudo e chamar para si os lucros do primeiro lote, foi absorvida pela narrativa reaccionária portuguesa: era assim, tinha de ser assim, porque afinal o que se queria era a salvação das almas daqueles incréus (menos dos corpos, já se vê... até porque muitos chegavam já mortos, dadas as sevícias sofridas e as horríveis condições da viagem). E depois... bom, depois escravos havia muitos, até portugueses/as às centenas (quiçá milhares), capturados e assim mantidos em África... até muito tarde, até mesmo depois da escravatura já ter sido abolida em Portugal”.

O que aqui salta primeiramente à vista, para lá do tom trocista, é a leitura tendenciosa da crónica de Zurara. A sua descrição dos escravos que começam a chegar a Lagos não é apenas “pungente”, como afirma Luís Raposo, é, também, auspiciosa, elogiando quem os trouxe para Portugal, descrevendo o seu reequilíbrio subsequente ao trauma inicial e a melhoria das suas condições de vida, como mostrei neste recente artigo que Raposo não terá lido (ou em que não terá tido vontade de acreditar). É importante não citar Zurara de uma forma vesga, lendo apenas com o olho esquerdo e tão só aquelas linhas que convêm a quem quer argumentar num determinado sentido. Os documentos são para ser lidos e interpretados na íntegra, como o arqueólogo e licenciado em História Luís Raposo tem obrigação de saber, ainda que não pratique.

A segunda coisa a criticar neste e no anterior parágrafo do texto de Luís Raposo tem que ver com o Infante D. Henrique. Por muito estranho que pareça, o arqueólogo ainda não percebeu que as noções, avaliações, direitos e considerações morais a respeito da escravidão e de outros factos da vida eram, no século XV, muito diferentes das que actualmente temos, e essa ignorância leva-o, à semelhança do que faria qualquer woke de gema, a tecer comentários e a fazer juízos desadequados, anacrónicos, condenatórios, sobre a conduta do infante. Ora, não se pode avaliar o seu comportamento como se estivéssemos a avaliar o de um dirigente político do século XXI. O Infante D. Henrique comportou-se, perante o primeiro grande desembarque de escravos em Lagos, como seria expectável, sem nada que, à luz dos códigos do tempo, fosse censurável, estando até, mais interessado na salvação das almas do que no ganho material, como referiu o cronista Zurara e como expliquei no artigo referido no parágrafo anterior.

E isto da salvação das almas leva-nos ao maior erro de Luís Raposo. O arqueólogo classifica como “narrativa reaccionária portuguesa” a ideia de que a escravatura dos negros “era assim, tinha de ser assim, porque afinal o que se queria era a salvação das almas daqueles incréus (menos dos corpos, já se vê... até porque muitos chegavam já mortos, dadas as sevícias sofridas e as horríveis condições da viagem)”. Como saberá Luís Raposo que muitos chegavam a Lagos já mortos? Tem dados estatísticos quanto a isso ou está apenas a atirar umas palavras dramáticas para o ar? Mas passemos a coisas mais importantes. Este excerto que acabo de transcrever mostra simultaneamente o impressionável coração do arqueólogo e o precipício da sua ignorância histórica. Só alguém profundamente desconhecedor do que foram as sucessivas legitimações ideológicas da escravatura, e da importância que as ideias de pecado e de salvação das almas nelas assumiram logo desde Santo Agostinho e outros Padres da Igreja, pode afirmar que a “salvação das almas” é uma “narrativa reaccionária portuguesa”. Não é. Faz parte de um sistema de representações mentais perfilhado pelas nações cristãs e cujas raízes, muito anteriores à formação de Portugal, nos obrigam a recuar até ao Império Romano. Não deixa de ser irónico que Luís Raposo exiba no Facebook, como sua leitura de férias, um livro de pensamentos de Séneca, sem se dar conta de que esse foi justamente um dos filósofos romanos que fundamentou as concepções que ele julga serem uma “narrativa reaccionária portuguesa”. De facto, Séneca foi um dos defensores da dualidade corpo/alma chegando mesmo a defender que só o corpo do escravo podia ser propriedade do senhor visto que a sua alma era livre, ou melhor, potencialmente livre. Foi nesse pensamento e no de outros estoicos — e, também, na mensagem cristã — que a Igreja assentou a sua concepção da salvação das almas dos escravos e por isso não causa qualquer surpresa que, no século XVII, por exemplo, o padre António Vieira se tenha apoiado explicitamente em Séneca para explicar aos escravos africanos que só o corpo seria cativo, pois a alma podia escapar ao domínio alheio. Seria o cúmulo da infelicidade se, já cativos do corpo, os negros viessem a ficar igualmente cativos da alma, vendendo-a ao Demónio, contaminando-a pelo pecado. O cativeiro da alma, sublinhava Vieira, tinha uma importância bem maior que o cativeiro do corpo e por isso Cristo viera à Terra como libertador das almas, não dos corpos. O objectivo primeiro era, portanto, libertar as almas, salvá-las da danação. É compreensível que Luís Raposo, nascido em 1955, não acredite lá muito nisso. Já é menos compreensível — e muito lamentável — que não perceba que nos séculos XV ou XVII, as pessoas cristãs não pensavam exactamente como ele agora pensa.

Em suma, quando tenta apoucar e conotar politicamente a teoria da salvação das almas chamando-lhe “narrativa reaccionária portuguesa”, Luís Raposo dá-nos, sem querer, um óptimo exemplo daquilo a que vulgarmente se chama ignorância atrevida. Porém, como estou certo de que o arqueólogo ainda não é demasiado velho para continuar a aprender, atrevo-me a recomendar-lhe a leitura do livro de David B. Davis The Problem of Slavery in Western Culture, uma obra absolutamente imprescindível para quem queira saber de que modo a nossa cultura lidou com as ideias de pecado e de salvação associadas à escravatura. Se esse livro estiver fora das suas cogitações, eu sugiro-lhe a leitura do sermão 27º do padre António Vieira, esperando que, lendo-o, fique devidamente elucidado e que, por tabela, conclua que a atitude do Infante D. Henrique nada tinha de invulgar ou de censurável de acordo com os padrões do tempo. Se ainda assim essa leitura for demasiado trabalhosa ou demorada para a sua vontade de saber ou para as suas disponibilidades de tempo, só poderei acrescentar que em 2004 aflorei tudo isso num livro que escrevi sobre escravatura. Se Luís Raposo tiver curiosidade poderá espreitar aqui.

Uma nota final e lateral sobre uma insinuação no texto do arqueólogo. Diz ele que eu me “afadig(o), no ‘Observador’, a dar voz a denúncias (sintomático termo...), embora depois as desdramatize em elevado grau”. Esta frase é muito enevoada para o meu entendimento, mas é óbvio que a palavra “denúncia” evocou fantasmas políticos na cabeça de Luís Raposo, um ex-militante do Partido Comunista. Eu já por duas vezes explicitei por que razão escrevi, com quem falei e o método que segui, e o arqueólogo poderá, querendo, ler tudo isso aqui. Se após ter lido continuar a ver em factos tão simples e claros um grande mistério ou algo suspeito, bom, então terá de se questionar a si próprio.

Voltando ao tema e concluindo: se, no que respeita à escravatura, o Museu de Lagos quiser seguir as interpretações de Luís Raposo, vendo o Infante D. Henrique como um ser execrável e as justificações ideológicas da escravatura, nomeadamente a teoria da salvação das almas, como uma “narrativa reaccionária portuguesa”, irá por mau caminho. Se optar por seguir a cartilha woke a que tem dado voz, irá por num caminho ainda pior. Se, pelo contrário, quiser ir no rumo da razoabilidade e do saber deverá preocupar-se em situar os personagens históricos no contexto do seu tempo e recusar a tranquilizadora, mas falsa, ideia de que a boa receita seria uma espécie de meio caminho entre as fantasias culpabilizantes dos woke e os exageros do discurso nacionalista. Ora, a narrativa histórica não é nenhuma bissectriz entre lados opostos. É, isso sim, seriedade em vez de chalaça ou caricatura das posições dos opositores; é rigor em lugar de palavras bombásticas, mas ocas — “reaccionária”, etc. —, que são mais próprias de velhas cassetes políticas do que de uma conversa sobre História; é respeito pela integridade dos documentos, em vez de leituras a gosto, parciais e tendenciosas; é explicitação e contextualização em vez de referências avulso e à luz da moral actual. Se for por aí, o museu irá bem. Aliás, a Câmara Municipal já tem um pequeno guia (Lagos na Rota da Escravatura) com informação correcta e que seria mesmo perfeita se, para além da descrição da partilha dos escravos, referisse com um pouco mais de detalhe o que Zurara disse acerca da sua integração na sociedade portuguesa, e se não conjecturasse sobre a mortalidade no transporte marítimo. Feito esse leve reparo, é seguir por aí com isenção e equilíbrio, sem apreciações subjectivas e condenatórias acerca de figuras históricas, e sem wokismo. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 17 de Setembro de 2025).