Lagos de Descobertas

25-08-2025 09:11

Em 25 de Junho a Câmara Municipal de Lagos procedeu à mudança do logótipo da cidade. Deixou de ser “Lagos dos Descobrimentos” para passar a ser “Lagos de Descobertas”. Já sabemos que as alterações de logótipos podem ter uma forte carga simbólica e política, mas eu não quero enveredar por aí. Quero, isso sim, dizer que essa alteração, associada aos aproveitamentos ideológicos recentemente feitos em torno de ossadas de africanos (provavelmente escravos) descobertas em 2008-10 na zona da antiga Gafaria, em Lagos, e a outros factos que considerou suspeitos ou indicativos de que a tónica posta no Infante e na história a ele associada estava a ser alterada ou depreciada, levaram uma senhora lacobrigense, devidamente identificada, a contactar-me para me dar conta das suas razões de queixa. Não querendo escrever sobre este assunto sem ouvir os dois lados da moeda falei também com a directora do Museu de Lagos que simpaticamente me explicou o processo de mudança do logótipo e me garantiu que essa mudança nada tinha que ver com o cemitério de africanos.

Acredito, claro, mas sem querer meter foice em seara alheia julgo que seria útil explicar tudo isso um pouco melhor aos habitantes de Lagos e ao país, e acima de tudo garantir-lhes que a existência de centena e meia de esqueletos no Vale da Gafaria não implica uma inversão de tónica nem qualquer desinvestimento nos aspectos positivos da História dos Descobrimentos. E assegurar-lhes também, querendo, que não há um resvalar da Câmara Municipal de Lagos, uma câmara do PS, para o wokismo, aqui entendido no sentido de culpabilização das figuras do passado à luz dos nossos actuais conceitos e juízos morais, uma lamentável tendência ultimamente na moda. É que, ao percorrer o que está na Internet, nomeadamente a programação de actividades culturais do museu, e uma vez que o actual lema da cidade é “Lagos de Descobertas”, eu também fiz uma descoberta que me deu a desagradável sensação — espero que errada ou ilusória — de que havia nessa programação uma propensão para o wokismo.

De facto, no passado dia 31 de outubro de 2024, o museu exibiu Debaixo do Tapete, um documentário claramente woke de Catarina Demony, uma jovem jornalista com sentimentos de culpa por ser descendente de notórios negreiros portugueses que actuaram em Angola nos séculos XVIII e XIX, quase sempre no período em que o tráfico de escravos foi legal. Escrevi sobre a referida jornalista e esse seu documentário um artigo no Observador (“A redenção de Catarina Demony”), para onde remeto os leitores interessados, artigo cujo conteúdo nunca foi refutado ou contestado, nem pela visada nem por outra pessoa qualquer. Para agravar a inclinação woke da iniciativa, verifico agora que ela foi integrada num ciclo intitulado “Libertar a Memória” e teve como comentadores ou debatentes Nuna e Apolo de Carvalho, um senhor que afirma na sua página de Facebook, que “a abolição (da escravatura) foi feita por pessoas negras” e que “os tugas foram os primeiros caçadores de humanos”, o que revela bem qual o nível dos seus conhecimentos históricos. Sobre Nuna, jovem actriz e activista afrodescendente, encontrei apenas a referência à autoria de dois livros para crianças e uma entrevista na qual assume que quer combater “o racismo institucional estrutural” e “(desconstruir) a opressão, o silenciamento, o lusotropicalismo, a normalização do bom racista, do bom colonizador”, de um Portugal que “tolera” os negros “em vez de (os) respeitar.”

Salvo melhor opinião, isto não é “libertar a memória”, mas sim aprisioná-la num colete de erros e culpabilizações. Isto não é informação, é propaganda e activismo woke de pessoas sem qualquer habilitação conhecida e reconhecida para falar deste assunto. Serão certamente pessoas muito competentes nas suas respectivas áreas de formação e saber, mas nenhuma delas tem, que se saiba, conecimentos específicos para informar (e debater) sobre a história do tráfico de escravos e da escravidão. Assim sendo, o que parece ter havido em Lagos, nesse fim de tarde, foi uma sessão de propaganda woke. Segundo me informam — eu não estive presente — os comentadores não responderam a perguntas da audiência e, pior, terão repreendido uma senhora que levantava a mão para questionar a oradora Nuna, com a admoestação ou advertência de que “não se interrompe uma mulher negra.”

Duas semanas depois, no dia 14 de novembro, a Câmara Municipal de Lagos acolheu, no mesmo ciclo “Libertar a Memória”, o filme Visões do Império, de Joana Pontes, um documentário que procura “reexaminar de forma crítica a História de Portugal e das antigas colónias”. Uma das intervenientes no debate subsequente foi Marta Lança, a activista woke criadora e editora de Buala, que os interessados podem percorrer e conhecer aqui. No dia 17 de novembro de 2024 houve uma conferência subordinada ao lema da “Desconstrução de narrativas e mitos” promovida pelo projecto “Roots”, projecto que tem como ponto de partida o tal cemitério de africanos no Vale da Gafaria e cuja natureza e objectivos podem ser vistos e avaliados neste link.

Não defendo que estas iniciativas não devessem ter ocorrido nem que estas pessoas não devessem ter sido convidadas, mas o que surpreende é que não se vislumbrem na programação das actividades do museu, nesta área do conhecimento histórico, vozes capazes de proporcionar à população interessada de Lagos um saudável e imprescindível contraditório. É claro que a Câmara Municipal de Lagos — como qualquer outra, aliás —, acolhe quem quer e não é, em bom rigor, responsável pelo que essas pessoas dizem, mas depois não deve admirar-se de que a conotem com quem acolhe, nem pode surpreender-se de que alguns munícipes sintam que, nos tempos que correm, valoriza mais a triste história da escravatura do que a dos Descobrimentos. Seria por isso tranquilizador e boa política, suponho, que as autoridades competentes mostrassem a quem o quiser ver que não têm a intenção ou a missão de “descolonizar o conhecimento” nem de fazer sobressair, em contraposição aos achamentos de terras e/ou gentes desconhecidas dos europeus e de povos de outros continentes, um cemitério com as ossadas de 158 africanos. É, sem dúvida, um achado arqueológico relevante, e um aspecto importante, ainda que muito triste, da expansão ultramarina portuguesa — aspecto que, ao contrário do que se tenta fazer crer, não é e nunca foi escondido ou secreto —, mas não se invertam as prioridades nem se ponha o carro à frente dos bois. As coisas têm importâncias relativas bem diferentes, ainda que a gente woke nos queira convencer do contrário. Voltarei a esse aspecto num próximo artigo. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 25 de Agosto de 2025).