La folie

04-03-2014 10:40

O caso aconteceu há poucos dias: acabado de aterrar em Frankfurt, vindo de Varsóvia, Jacek Protasiewicz, um político polaco que é, entre outras coisas, vice-presidente do Parlamento Europeu, envolveu-se numa discussão com um funcionário da alfândega no decurso da qual lhe perguntou se já tinha estado em Auschwitz e lhe gritou na cara, alto e bom som, a saudação nazi: Heil Hitler! Houve escândalo, a polícia foi chamada e a comunicação social deu conta do assunto. Protasiewicz ainda tentou arranjar atenuantes para o seu
comportamento peculiar, mas teve de apresentar a sua demissão.

Esta história de desequilibrio de um político com responsabilidades é inquietante e lembra-me uma outra mais grave e mais famosa, ocorrida nos Estados Unidos no início de 1949. O Departamento de Defesa americano vivia, então, um período difícil pois aUnião Soviética desenvolvia a sua arma nuclear e a parte ocidental de Berlim continuava bloqueada, exigindo uma ponte aérea para abastecer os seus habitantes. Talvez essas dificuldades tenham contribuído para acentuar o desequilíbrio psicológico do Secretário da Defesa, James Forrestal, um homem que se dizia espiado por agentes estrangeiros e que foi várias vezes encontrado
sozinho no seu gabinete a repetir frases incoerentes. O Presidente Truman decidiu prescindir dos seus serviços e fez bem. Três dias depois de ter sido exonerado, Forrestal saíu espavorido do seu quarto de hotel gritando "the Russians are coming". No dia seguinte, foi internado no serviço de psiquiatria de um hospital da Marinha e mês e meio depois morreria, atirando-se de uma janela desse hospital.

Houve quem dissesse que não fora um suicídio mas sim um assassinato perpetrado pelos russos ou, até, pela CIA, apostada em impedir que Forrestal revelasse o que sabia sobre discos voadores. Mas, deixando de lado essas teorias conspiratórias - que nunca se provaram -, o que quero sublinhar é o alto nível de inquietação que
então perpassou pela sociedade norte-americana. O caso não era para menos. De facto, como teria sido possível que um homem profundamente desequilibrado tivesse sido detentor de uma fatia tão grande de poder? Como teria sido possível que a decisão de usar a bomba atómica estivesse, no fundo, dependente de um paranóico? No contexto do intenso debate que se seguiu, houve logo quem julgasse ter encontrado a solução para preservar a sociedade de governantes loucos: de futuro - exigia-se - qualquer candidato a uma função política teria de ser passado pelo crivo dos psiquiatras. Tratava-se, evidentemente, de uma falsa solução. Mesmo que os psiquiatras tivessem a capacidade técnica e divinatória que os mais ingénuos lhes atribuíam, em democracia uma intervenção desse tipo dificilmente poderia ser levada à prática, e, ainda que pudesse sê-lo, serviria apenas para deslocar o problema sem de facto o resolver. Admitindo que o crivo psiquiátrico fosse um controlo securitário possível, quem, por sua vez, controlaria os controladores? Quem controlaria o enorme poder social e político que os psiquiatras passariam a deter?

Não existindo meios técnicos para proteger antecipadamente a comunidade de pessoas que enlouquecem
e só se podendo agir sobre elas a posteriori, a questão suscitada por Forrestal foi perdendo o destaque das
primeiras páginas e acabou a servir de combustível a abordagens mais ou menos satíricas no cinema - Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick, por exemplo - e noutros campos da expressão cultural. Na verdade, toda a gente se resignou à ideia de que as sociedades estão expostas à loucura em todas as áreas, incluindo na política, sendo que a única antepara possível contra a entrada de lunáticos nos governos resulta da conjugação do bom senso e de uma opinião pública atenta. Louvemos, por isso, a nossa atentíssima comunicação social, que pode mostrar-nos quem não nos convirá eleger, e demos graças a Deus por já não vivermos na Roma Antiga, onde a loucura florescia e chegou a haver um imperador que fez do seu cavalo senador. João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Jornal i, 4 de Março de 2014).