Jonet e a ideologia da tutela

09-04-2014 08:19

Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome, disse recentemente na Rádio Renascença, que "o pior inimigo dos desempregados são as redes sociais". Concretizando melhor o seu raciocínio, Jonet criticou os que não têm trabalho e ficam "dias inteiros agarrados ao Facebook, ou agarrados a jogos", vivendo uma vida de "total ilusão", quando podiam muito bem participar em acções de voluntariado, que os manteriam "activos" e onde aumentariam as suas possibilidades de arranjar emprego.

Estas declarações de Isabel Jonet incomodam-me por várias razões, a primeira das quais é a sua falta de dimensão e espessura psicológicas. Aparentemente, a Presidente do Banco Alimentar Contra a Fome, não entende - ou não reconhece - estados de espírito, desmotivações, depressões, que condicionam e embotam a
vontade humana. Incomoda-me também que Jonet confunda com alguma frequência a sua louvável actividade social com a função de pastora dos povos. Dito isto, eu não quero analisar directamente o pensamento de
Jonet mas sim uma ideia que logo se levantou para a defender das críticas. Essa ideia é a de que a pessoa
em causa dedica a sua vida a ajudar os outros e, portanto, tem o direito de lhes indicar o rumo certo e de estipular o que é melhor para eles. Trata-se de uma ideia paternalista segundo a qual há certas pessoas que pela sua educação, actividade ou posição social, e pelo facto de ajudarem os necessitados, sabem muito melhor do que eles aquilo que, na verdade, lhes convém.

Ora, será assim? Eu acho que não. O facto de Isabel Jonet dedicar parte da sua vida à muito meritória
actividade de ajudar os carenciados não lhe confere nenhum direito especial. Tal como o facto de eu ser - por
hipótese - médico e de salvar pessoas não me dá nenhuma autoridade para estabelecer as regras segundo as quais eles devem viver, pensar ou comportar-se. E o mesmo poderia ser dito a respeito de bombeiros, parteiras, e de várias outras profissões ou actividades que ajudam o próximo.

E mais: há nesta ideia de que certas pessoas podem estipular o que os outros devem fazer das suas vidas, um
preocupante resvalar para um pensamento muito perigoso que legitima, em certas circunstâncias, a imposição do trabalho coercivo. Deixem-me dar o exemplo muito conhecido e eloquente. Os primeiros abolicionistas acreditavam que os escravos, não podendo possuir nada, não tendo interesse directo no que as suas mãos faziam, não trabalhavam tanto quanto eram capazes. Se fossem libertados, se pudessem ganhar salários e comprar mercadorias - diziam eles - passariam a trabalhar muito mais e a produtividade aumentaria. Com base nessa crença económica (e, também, noutras de natureza moral e religiosa) aboliu-se a escravatura. Mas os sonhos optimistas dos abolicionistas não se realizaram. Em muitas regiões tropicais em vez de aumentar a produtividade decresceu. Porquê? Porque dispondo de terras onde podiam fixar-se e desenvolver uma simples economia de subsistência, os ex-escravos esquivavam-se ao trabalho nas plantações - que era duríssimo - ou só o faziam a troco de salários compensadores. E, então, como muitos negros não correspondiam às expectativas dos que se tinham empenhado em libertá-los, veio a convicção de que essa suposta "falha" ou "fracasso" dava aos seus "protectores" o direito de os tutelar paternalmente e de os forçar a trabalhar para seu próprio bem. E surgiram, ainda no século XIX, as leis contra a (suposta) vadiagem e a imposição do trabalho coercivo que, no fundo, nada mais eram do que a reposição da escravatura com outro nome.

O resto da história é bem conhecida, liga-se com a história do colonialismo e escuso de a repetir aqui. O ponto, porém, é o seguinte: estão a reaparecer nos nossos dias muitos elementos desta ideologia tutelar que era comum no século XIX. Por isso, talvez fosse importante lembrar que graças aos beneméritos que se acham no direito de dirigir as nossas vidas, as boas intenções levam muitas vezes a terríveis soluções - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Jornal i, 9 de Abril de 2014).