Injecção brasileira, 7ª dose

04-06-2025 20:19

Nos últimos anos tem-se verificado a intervenção de vários cidadãos brasileiros ou residentes no Brasil no debate sobre escravatura, e é possível afirmar que grande parte do se discutiu na esfera pública, desde 2023, foi por eles aí injectado. Essa intervenção poderá ser muito positiva, se for construtiva e esclarecedora, mas por vezes para além de assumir uma forma panfletária de estimulação ou de provocação, ela caracteriza-se pela propagação de estereótipos errados. Foram, nomeadamente, os casos do cantor Luca Argel, dos artistas Dori Nigro e Paulo Pinto e do compositor Pierre Aderne.  A última dose dessa injecção algo tóxica, a que o jornal Público, como tem sido habitual, deu voz, surgiu há dias e tem como autor José Luís Landeira, um residente no Brasil que se apresenta como linguista. Ora, ao falar de escravatura, Landeira avança infelizmente com vários erros e meias verdades, e faz algumas confusões que em lugar de esclarecerem as coisas as baralham e obscurecem.

De facto, o referido linguista afirma que a prática da escravidão remonta ao Império Romano, o que é um erro grosseiro, já que essa prática é muito anterior aos romanos. Está atestada na Suméria e noutros estados do mundo antigo desde que há registos escritos, isto é, desde o IIIº milénio a.C. Diz, também, que “Portugal foi o primeiro país a comercializar internacionalmente escravizados africanos”, o que é um erro ainda mais grosseiro e flagrante, pois mesmo sem recuarmos desnecessariamente no tempo, houve estados árabes (os califados abássida e fatímida, vários emirados e sultanatos, etc.) que promoveram o tráfico de negros de África para a Ásia e a Europa, antes ou muito antes de os portugueses terem começado as suas viagens de descoberta ao longo da costa africana e terem iniciado a compra e exportação de escravos africanos. Na Idade Média já havia escravos negros no Extremo Oriente e não foram portugueses que os levaram para lá.

José Luís Landeira afirma, ainda, que “em 1761, o Marquês de Pombal proibiu a entrada de novos escravos, mas que isso “não acabou com a escravidão portuguesa”. Claro que não, nem era essa a intenção do alvará de 1761 que apenas visava o fim do tráfico, isto é, da entrada de novos escravos no território europeu de Portugal. Mas em 1773 — e não 1783, como Landeira erradamente afirma — Pombal pôs fim, de forma gradual, à escravidão. O articulista residente no Brasil nota, em tom acusatório, que em Portugal nunca chegou a haver uma lei como a Lei Áurea brasileira que pôs fim, de chofre, à escravidão. De facto não houve uma lei dessas em Portugal pois os políticos portugueses optaram, tanto para a metrópole como, depois, para as colónias, por seguir um método gradual, como aliás havia sido feito por vários estados americanos. Mas quando, a 13 de Maio de 1888, a Lei Áurea tornou ilegal a escravidão no Brasil, já ela era ilegal há muitos anos no território português. José Luís Landeira esqueceu-se desse facto e de sublinhar um outro ainda mais importante: é que a Lei Áurea veio pôr fim a uma situação que se tornara desonrosa para os brasileiros, visto que já todos os países ocidentais haviam abolido a escravidão, excepto o Brasil, que ainda a mantinha.

José Luís Landeira tem outros esquecimentos selectivos e afirma outras enormidades — como, por exemplo, a de que o Estado português escondeu “jeitosamente” (isto é, ardilosamente) a sua história africana, ou a de que essa história é pouco estudada e mal conhecida — que são tão evidentemente falsas que nem vale a pena refutá-las aqui. O que importa sobretudo é reafirmar que, ao contrário do que vários articulistas ou activistas de origem ou residência brasileira pensam e sugerem, não há analogia ou paralelo entre o caso português e o brasileiro. A dimensão e a importância que a escravidão de africanos teve no Brasil nada tem a ver com o peso e significado que assumiu na sociedade portuguesa. Sim, houve escravos em Portugal, mas em números relativamente diminutos quando comparados com os das colónias americanas. Aqui constituíram sempre uma parcela muito menor da população, ao invés do que sucedeu no Brasil ou nas Caraíbas, onde chegou a haver onze escravos negros para cada branco. O seu papel na economia do Portugal europeu não foi estruturante e fundamental, e aqui nunca houve levantamentos de escravos nem quilombos, ao invés do que ocorreu no Brasil, onde se verificaram vários. Estar a misturar alhos com bugalhos é absolutamente contraindicado, pelo que a primeira coisa que as vozes provenientes do Brasil, e as dos portugueses que gostam de reproduzir as suas perspectivas, devem tentar perceber é que, no que toca à escravatura, a problemática brasileira é radicalmente diferente da portuguesa e confundir tudo num mesmo saco é o pior serviço que podem fazer ao esclarecimento da opinião pública.

São os brasileiros que têm grandes problemas com as heranças políticas, sociais, económicas, culturais e outras do tráfico de escravos e da escravidão. Portugal não tem esses problemas e é pernicioso estar a injectá-los artificialmente na nossa sociedade. É bom que se separem as águas e que se usem diferentes seringas. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 4 de Junho de 2025).