Imagine

25-05-2017 08:43

Há quem sustente que as pessoas têm o direito de imigrar para onde lhes apeteça, mesmo que ilegalmente, usufruindo dos apoios que cada país decidiu conferir aos imigrantes legais. Os que defendem esse ponto de vista não aceitam que os governos possam limitar ou bloquear, por razões de segurança ou outras, a entrada de imigrantes comuns (não falo aqui em refugiados de guerra) nos territórios que defendem e administram. Essa opinião está muito difundida no mundo ocidental e é a manifestação pública de uma ideologia utópica com raízes muito antigas, mas que, na sua forma moderna e popular, acessível a todos, vem florescendo desde finais da década de 60 e que pode ser enunciada assim: "Imagine que não há países - não é difícil de imaginar. Imagine que não há nada por que tenhamos de matar ou morrer e que também não há religião. Imagine toda a gente a viver a sua vida em paz. Poderá achar que eu sou um sonhador, mas há outros como eu. Espero que um dia se junte a nós e que o mundo seja uno e de todos. Sim, imagine toda a gente a partilhar o mundo inteiro".

Este excerto (que traduzi de maneira aproximativa) foi escrito em forma de verso por John Lennon e é parte integrante de Imagine, uma canção que ele lançou em 1971. Era o tempo em que os hippies começavam a ir para Goa ou Katmandu, fascinados pelo Oriente, e em que o mundo muçulmano era o espaço exótico e amistoso que se cantava, por exemplo, em Marrakesh Express, de Graham Nash. O mesmo Nash que, em Immigration Man, se insurgia contra os obstáculos que, já nessa altura, os Estados Unidos punham à chegada de imigrantes. Mas deixemos Nash e voltemos ao Lennon de 1971. Para alguns - os mais velhos ou os mais analíticos -, Imagine era um exemplo do primitivismo e da nostalgia de paraísos perdidos, típicos da cultura hippie; mas para outros aquela canção era não só um hino à benevolência e ao optimismo, mas um projecto político para a criação de um mundo pacificado e pacífico, sem fronteiras nem nacionalidades. Claro que, em 1971, esse mundo era apenas um fito e uma promessa. Com o andar dos anos, porém, foi-se materializando peça a peça e aí o temos. Todavia, e como sucede com todos os milenarismos, o sonho de Lennon chegou até nós incompleto, deformado e com vários elementos de pesadelo, o primeiro dos quais é o terrorismo islâmico disseminado à escala global. Os cantores e ideólogos ocidentais que, nos anos 60-70, encomendaram um mundo aberto e fraterno nunca anteviram que, no embrulho, também viessem os terroristas da Al-Qaeda ou do Estado Islâmico. Mas a verdade é que vieram (ou já cá estavam e em vias de radicalização). Por essa e outras razões, e ainda que Imagine seja um horizonte admirável quando flutuamos nos éteres da fantasia, a verdade é que a coisa muda de feição quando se aplica à vida real. Uma vida real onde, como assinalou Daniel Oliveira, os que "defendem os direitos dos imigrantes e a solidariedade entre povos" têm feito causa comum com os burocratas de Bruxelas e os políticos e financeiros neoliberais, apologistas da "livre circulação de capitais". Ou seja, o mundo totalmente aberto criou uma noite em que todos os gatos são pardos. Foi essa noite de confusões e de inquietações que, em França, por exemplo, pôs Le Pen e Mélenchon na mesma trincheira. Vivem-se dias estranhos. Teria Lennon, se fosse vivo, a capacidade para imaginar uma nova utopia que nos ajudasse a resolver os dilemas do nosso tempo? - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez em 25 de Maio no Diário de Notícias).