Hotel California

16-04-2013 07:51

Na esteira da crise cipriota voltou a falar-se insistentemente na possibilidade de alguns países em dificuldade (desde logo o próprio Chipre) sairem do euro ou, até, da União Europeia, quer como castigo — uma ameaça que a Alemanha gosta de brandir —quer por vontade própria, para assim recuperarem as suas moedas nacionais e tentarem reconstruir as suas economias devastadas. Estou firmemente convencido de que a ameaça de expulsão, vinda de países como a Alemanha, é um bluff tendente a fazer aceitar exigências de natureza organizativa e financeira. Os países dominantes não têm interesse em que os países dominados saiam da sua esfera de controlo. E é justamente aí que reside um dos aspectos mais perigosos desta situação. Não me refiro aos aspectos económicos da questão (que não domino, ainda que saiba que põem dificuldades e dilemas enormes). Olho para uma eventual saída do euro ou, até, da União, em termos políticos e, sobretudo, históricos, isto é, em termos de história comparada.

Todos sentem a incerteza e a perigosidade dos tempos que vivemos. Há muita tensão no ar, a animosidade entre os povos europeus cresce a olhos vistos, a visão que a gente do sul tem da do norte e vice-versa não é simpática, a crise económica e social em que Portugal, Grécia e outros países europeus estão mergulhados parece não ter fim à vista, e, nalguns casos, surgem na ribalta política líderes extremistas e anti-sistema que há poucos anos não teriam lugar nem expressão, mas que, neste contexto, contribuem para acirrar as coisas. Assim, não é de estranhar que haja fundados receios de que os ventos de guerra decidam, um dia, recomeçar a soprar. Ainda há pouco, Jean-Claude Juncker veio confessar a sua inquietação por ver como são semelhantes as circunstâncias da actual Europa e as que existiam em vésperas da 1ª guerra mundial. Outros comparam a situação que agora vivemos à da década que antecedeu a 2ª guerra mundial e temem que no meio da crise e da estúpida austeridade acabe por emergir um líder populista, um ou vários novos Hitlers ou Mussolinis que arrastem a Europa (apesar de muito desmilitarizada) para uma nova hecatombe.

Eu percebo esses receios e partilho-os. Mas para mim a melhor e mais inquietante analogia que a história tem para nos oferecer é a da desunião dos Estados Unidos em meados do século XIX, desunião que, como se sabe, levou à Guerra da Secessão. E as analogias são várias. Desde logo existe entre nós, como lá existia, uma oposição norte-sul, e, de um lado e de outro, diferentes culturas e percepções do mundo e da vida. Existia, nos Estados Unidos de meados de oitocentos, uma linha política e cultural (a linha Mason-Dixon) que separava o norte do sul, tal como hoje existe, na Europa, uma linha imaginária que, grosso modo, separa o velho mundo greco-latino das culturas de raíz germânica do norte. Mas dir-se-á que não há na Europa, como dantes havia nos Estados Unidos, uma diferença de organizações económicas e sociais, nem uma oposição de concepções sobre liberdade e direitos humanos, e que isso faz toda a diferença. A maior parte das pessoas dirá, provavelmente, que a guerra entre nortistas e sulistas foi declarada apenas por causa da escravatura, coisa que já não existe no nosso mundo europeu. Mas não é exactamente assim. Quem ler Road to Disunion, de William Freehling, perceberá que o que levou directamente à guerra foi uma aversão recíproca de nortistas e sulistas, alimentada por constantes crises, atritos, provocações, e um progressivo desequilíbrio político, originado por um maior crescimento demográfico e industrial do norte. A aversão e o desequilíbrio acentuaram-se ao longo do tempo até que a vontade dos estados do sul de sairem da União se tornou geral e se concretizou. Foi essa saída que desencadeou uma guerra que se esperava rápida, dada a superioridade material do norte, mas que se prolongou por mais de 4 anos, deixando no seu rasto um trágico cortejo de 620 mil soldados mortos.

Voltemos à nossa época, tendo esse exemplo norte-americano em mente. Reafirmo que as ameaças de expulsão do euro são um bluff. A Alemanha tem neste momento um imperium informal sobre o resto da Europa e não me parece que esteja disposta a abrir mão dele. Duvido, por isso, que os países pequenos sejam “acarinhados” e “compreendidos” se quiserem sair da moeda única ou da União Europeia. Sempre suspeitei que a União era uma daquelas organizações onde seria mais fácil entrar do que sair e agora sinto isso com mais intensidade, como se estivessem constantemente a tocar-me a música do Hotel California: “We are programmed to receive. You can check-out any time you like but you can never leave”. Ainda assim, e como sou sensível aos argumentos de João Ferreira do Amaral e de outros economistas favoráveis à saída do euro, considero que devemos tentar a nossa sorte e seguir esse rumo, com muita diplomacia, de uma forma equilibrada, pois não devemos esquecer que estamos sentados em cima de um verdadeiro barril de pólvora, tanto económica como politicamente. E se viermos a entrar numa “Road to Disunion” teremos de a percorrer com muitíssimo cuidado, porque os demónios da guerra costumam andar nas imediações desses caminhos - João Pedro Marques (publicado pela primeira vez in Público de 15 de Abril de 2013).