Guterres e a escravatura

11-04-2023 09:45

Anualmente, a 25 de Março, a ONU vem a público celebrar o “Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Escravos”, que ela própria instituiu, em 2007. E ano após ano, por essa altura e por inerência do cargo — noblesse oblige, suponho eu —, o secretário-geral António Guterres tem feito discursos apropriados à ocasião. Costumam ser, ainda que com variações de ano para ano, discursos que obedecem a um padrão estereotipado e que são, como talvez seja inevitável, profundamente políticos e ideológicos, o que não invalida que devessem ser, ainda assim, equilibrados e rigorosos do ponto de vista histórico.

Infelizmente não o são, pelo contrário. Provavelmente sem que Guterres se dê conta disso, os discursos que tem pronunciado têm alguns erros factuais e sérias omissões. Em 2022, por exemplo, o engenheiro afirmou que o tráfico transatlântico foi um “tráfico humano de uma dimensão sem precedentes”, quando, na verdade, e sem pôr em dúvida o seu óbvio horror e trágico volume, foi equiparável ao tráfico levado a cabo pelos negreiros muçulmanos, e foi quantitativamente muito menor do que o tráfico realizado nos tempos do Império Romano (que se calcula ter sido de, pelo menos, 100 milhões de pessoas). A verdade, porém, é que tudo isso foi há mais tempo, longe do Atlântico, e os actuais descendentes dessas vítimas perderam o fio da meada. Os que o não perderam, são maioritariamente silenciosos ou brancos e não têm representantes seus a fazer pressão nas Nações Unidas, nem ninguém a quem apontar o dedo. As suas distantes dores e agruras já não interessam à política dos nossos dias.

Não tendo esses outros tráficos nos seus horizonte e pensamento, que costuma, então, dizer-nos António Guterres a propósito da escravidão e do comércio transatlântico da escravatura? Tem referido que é uma história de "crueldade e barbárie" — o que é verdade —, tem relembrado e enaltecido as realizações e capacidades dos africanos — o que é justo e positivo —, mas tem também dado alguns tropeções em questões de detalhe ou, o que é pior, de substância. Em 2021, por exemplo, afirmou que o tráfico transatlântico “acabou há mais de 200 anos”, o que é falso. Considerou que as ideias de supremacia branca que o escoraram continuam vivas, o que é altamente discutível, por várias razões. E disse que esse tráfico devastou o continente africano, "impedindo o seu desenvolvimento por séculos", o que é uma meia-verdade, pois atribuiu ao tráfico transatlântico um ónus que cabe, também, aos tráficos levados a cabo através do deserto do Sara, do Índico e do mar Vermelho. Foi o conjunto de todos esses tráficos que pesou duramente sobre África e não apenas o tráfico transatlântico. Mas, claro que, tanto quanto sei, não existe um “Dia Internacional do Tráfico de Escravos Trans-sariano e Trans-Índico”, e essa inexistência já diz, por si só, muito sobre o pendor ideológico que vai prevalecendo, nesta área, na ONU.

Podemos, ainda assim, considerar que esses são erros de pormenor. Porém, há um lapso — ou, se quisermos, um silêncio — que é mais sério, mais profundo e estrutural, e que diz respeito à completa ausência de brancos nas mensagens transmitidas. No discurso de 2023 ainda houve a utilização fugaz do termo “abolicionistas”, sem, contudo, se especificar do que se falava, mas nos outros anos foi um vazio total, pois não existiu uma única palavra para os brancos que, solidarizando-se com as vítimas, lutaram para que fossem libertadas e para que se pusesse fim à aberração do sistema escravista.

É verdade que nestes dias internacionais “em Memória das Vítimas da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Escravos”, celebrados a 25 de Março, o foco está, como o próprio nome indica, nas vítimas. Mas as Nações Unidas também celebram, a 23 de Agosto de cada ano, o “Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e da sua Abolição”. Em Inglaterra, pelo menos, as pessoas e os poderes políticos têm comemorado esse dia de uma forma mais justa e verdadeira, celebrando, muito adequadamente, os abolicionistas brancos — como Thomas Clarkson, por exemplo — que se bateram e conseguiram pôr fim a tal horror, como pode ver-se neste vídeo de 2021. Guterres também tem discursado nesse dia, na sede da ONU, mas, que eu saiba, não tem evocado os brancos. O que costuma evocar, como se pode ver e ouvir neste vídeo de 2019, é “o invencível espírito que levou os escravizados a revoltar-se contra a sua condição”, o que nos remete para o campo da excepcionalidade ou da ficção. Em vez de nos falar em Thomas Clarkson ou William Wilberforce, Guterres tem celebrado líderes negros como Zumbi, do quilombo dos Palmares, no Brasil, ou a rainha Njinga, da actual Angola. O secretário-geral da ONU não terá certamente consciência disso, mas está a dizer disparates. Nem Zumbi nem Njinga eram anti-escravistas ou deram qualquer contributo para a abolição do tráfico de escravos. No caso da rainha Njinga, muito pelo contrário, pois, como é sabido, foi uma participante activa nesse tráfico.

No YouTube um comentador mais lúcido chamado Kevin Smith, deu conta da sua perplexidade ao verificar que não havia da parte de Guterres referência a um único abolicionista branco: “Não há menção a Benjamin Lay, John Newton, William Wilberforce, Thomas Clarkson, Harriet Beecher Stowe ou Abraham Lincoln” — constatou ele. — “Estou desapontado” — acrescentou. E eu, se não soubesse o que a casa gasta, poderia irmanar-me nesse seu sentimento e escrever: “também eu”. Mas, na verdade, não estou nada surpreendido. Conheço há muito tempo e por experiência própria o mantra das Nações Unidas neste capítulo, pois fui convidado, já lá vão cerca de 20 anos, para integrar o projecto “Rota do Escravo”, da UNESCO, um projecto que, vim nessa época a perceber, terá nascido a partir de uma proposta do Haiti e de países africanos com o objectivo de recontar a História supostamente “silenciada” ou “censurada” da escravatura. Fui durante algumas semanas, apenas, membro desse projecto, pois logo dele me desliguei. Especificando melhor, estive presente na primeira reunião de trabalho e, dando-me conta de que a visão da ONU e da UNESCO era (e é) aquilo a que, nos dias de hoje, chamamos wokismo, ou seja, uma visão essencialmente ideológica e política que visa reescrever a História de uma forma que reputo desequilibrada e enganadora, contra a qual me bato há décadas, apresentei acto contínuo a minha demissão.

É pena que António Guterres se tenha submetido a esse mantra das Nações Unidas e eu julgo que não era forçoso que assim fosse, não obstante o cargo que desempenha, pois essa organização poderá condicionar, mas não imporá coletes de forças a ninguém. Há cinco anos, no “Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e da sua Abolição”, a então embaixadora dos Estados Unidos da América, Nikki Haley, fez um discurso equilibradíssimo e justo. Recordou as pessoas escravizadas que, como Elizabeth Freeman, lutaram nos tribunais (e não de armas na mão) para conseguirem a sua liberdade, mas não se esqueceu dos brancos que, como o presidente Lincoln, por exemplo, tiveram um papel fulcral na emancipação.

Guterres não tem seguido esse caminho de equilíbrio e verdade histórica. Não sei se é o próprio que escreve os seus discursos ou se, como é muito mais provável, se limita a fazer uma leitura mais ou menos declamada — como já Ban Ki-moon antes dele havia feito — de textos que os serviços ou o gabinete lhe preparam. Num caso ou no outro uma coisa é certa: Guterres tem enveredado, ou deixa-se conduzir, por uma via enviesada, politicamente correcta e de apagamentos selectivos — neste caso concreto, de apagamento do papel decisivo desempenhado pelos brancos na abolição da escravatura. Quem ouvir os seus discursos poderá notar que não parece haver grande diferença entre o que ele diz e o que, entre nós, dizem Joacine Katar Moreira, Mamadou Ba e outros activistas woke, o que não é de estranhar. A ONU é, neste capítulo, uma caixa de ressonância desse activismo e vice-versa. Terá Guterres consciência disso e das vozes a que está a dar cobertura? - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 11 de Abril de 2023).