Gilberto Freyre tinha em parte razão
Por norma associa-se a palavra lusotropicalismo a Gilberto Freyre, o autor de Casa Grande e Senzala (1933), o que se justifica, pois foi esse sociólogo brasileiro que a utilizou pela primeira vez, e que desenvolveu toda uma teoria que, no fundamental, defende que o negro, o índio e, também, eventualmente, o asiático, deram um contributo muito importante na formação do Brasil e das outras colónias lusotropicais; que os portugueses tinham uma capacidade especial de se relacionar e confraternizar com outros povos, sobretudo os dos trópicos; que praticavam nessas regiões um cristianismo fraternal caracterizado pela tolerância, a brandura e a humanidade, e quase não tinham preconceitos raciais; e que manifestavam apetência para a miscigenação, dando origem ao mestiço, relativamente ao qual os progenitores portugueses revelariam uma atitude de grande aceitação, algo que, excepção feita aos espanhóis, seria raro entre os povos europeus modernos.
Em suma, o lusotropicalismo afirma a ideia de especificidade do colonialismo português. Haveria um “modo português de estar no mundo”, isto é, uma maneira específica de os portugueses se relacionarem com outros povos e que seria mais branda ou mais humana do que a de outros europeus.
A primeira grande crítica ao lusotropicalismo veio de Charles R. Boxer, o historiador e antigo militar inglês que em Race Relations in the Portuguese Colonial Empire, 1415-1825, publicado em 1963, afirmou que o lusotropicalismo não teria fundamento histórico, pelo contrário. Segundo Boxer, os portugueses, longe de serem excepcionais, haviam sido tão racistas como outros europeus. O inglês contestou, igualmente, a ideia de que os portugueses tivessem tido uma forma tolerante e suave de se ligarem à gente dos trópicos, que tivesse havido uma integração harmoniosa, apontando, ao invés, a sua violência e conduta discriminatória em relação aos povos colonizados. A miscigenação que efectivamente se podia constatar nas possessões portuguesas não significaria que houvesse ausência de preconceito de cor, mas seria apenas uma decorrência da falta de mulheres brancas. Em vez de miscigenação amorosa o que teria havido era, em boa medida, estupro.
Alvo dessa e de outras críticas, associado ao Estado Novo, que a partir de certa altura o explorou de forma manifesta tanto do ponto de vista ideológico como político, o lusotropicalismo caiu em desgraça e passou a ser considerado um corpo teórico inteiramente enganador. A esquerda, sobretudo, como campeã do pós-colonialismo, isto é, do combate contra as ideias que o colonialismo terá criado acerca dos povos colonizados, ridicularizou-o, amachucou-o e deitou-o para o caixote do lixo das ideias. Mais. Apupou e tentou amesquinhar quem se atrevesse a defendê-lo. Há cinco anos José Ribeiro e Castro assumiu-se como lusotropicalista. Explicou que “o lusotropicalismo não é um negacionismo, nem conformismo”, mas sim “uma ferramenta fundamental: um povo que tem de si mesmo a ideia de que não é racista vincula-se a não o ser, a reprimir tudo o que ofenda esse código ético e a levar sempre mais longe esse compromisso”. Foi de pronto contrariado pela historiadora Cláudia Castelo que viu em Ribeiro e Castro a personificação do efeito que a propaganda salazarista e lusotropicalista teria tido nas mentes das pessoas, ou seja, ele seria um exemplo do “estado de ilusão e da preguiça mental (sic) que o Estado Novo criou”. Na visão de Cláudia Castelo o ex-presidente do CDS seria “o resultado consciente e pacificado (sic) da eficácia do aparelho político-ideológico do Estado Novo (…) na propagação de uma imagem essencialista do povo português com traços positivos, na exaltação de uma suposta excepcionalidade da colonização portuguesa e na inclusão de uma norma (mas não de uma prática) anti-racista”.
Há no artigo de Cláudia Castelo um arrogante tom de comiseração por José Ribeiro e Castro e pelos que, como ele, se limitariam — na óptica da historiadora — a papaguear, de forma acéfala, aquilo que o Estado Novo lhes teria inculcado nas décadas de 1950 e 1960. E com este tipo de tiradas agrestes, com esta anatematização das mentes discordantes, julga a esquerda que arruma de vez o problema. Todavia, ele é mais persistente porque tem subjacente algo que é observável e, às vezes, mensurável. Na verdade, parte das ideias de Freyre assentam numa fundamentação anterior a elas, e são, aqui ou além, confirmadas pela investigação actual — foram, aliás, essas informações mais recentes que me levaram a escrever este artigo.
Comecemos pela fundamentação antiga para sublinhar que algumas das convicções de Gilberto Freyre já haviam sido avançadas por outros nos séculos XVIII e XIX — eventualmente até antes — não apenas em Portugal, mas também no estrangeiro. Quem ler a Histoire philosophique et politique des Deux Indes, uma obra colectiva de 1772, atribuída ao abade Raynal, encontrará apreciações positivas — em termos relativos, entenda-se — sobre a colonização portuguesa. Esse tipo de apreciações encontra-se, também, em De la littérature des nègres, um livro do abade Grégoire, publicado em 1808, em que se transmite a ideia de que, comparados com os povos do norte da Europa, os portugueses (e os espanhóis) tratariam melhor os indígenas e os escravos e negros livres. Em 1819, o por vezes designado primeiro socialista português, Francisco Solano Constâncio, considerou, nos Annaes das Sciencias, das Artes e das Letras, que existiria um sistema português de relacionamento com os negros, sistema que constituiria a coroa de glória da relação de Portugal com África e que se resumia no “espírito de mansidão e de fraternidade” com que, no geral, Portugal tratara as nações indígenas, nas quais introduzira, “por meios de doçura”, o cristianismo e os conhecimentos técnicos que então possuía. Enquanto vários autores estrangeiros consideravam os africanos como animais destinados por natureza à escravidão, o sistema português, instituído desde os primórdios, aceitava, como princípio, que os negros eram “homens como os brancos”, susceptíveis de educação.
Essas e outras ideias semelhantes continuaram a ser explicitadas ao longo do século XIX, em particular no seu último quartel, por pessoas que — e suponho que Cláudia Castelo não me irá desmentir — nunca estiveram sujeitas às inculcações ideológicas do Estado Novo. A mente de vários historiadores estrangeiros contemporâneos — passo, agora, às fundamentações mais recentes — também não foram moldadas pelos ideólogos e propagandistas de Salazar. Todavia esses historiadores não podem deixar de notar que havia qualquer coisa de diferente na forma como Portugal se relacionou com os trópicos. Como nota um deles, após três séculos de ocupação colonial neerlandesa na Indonésia, ninguém fala por lá holandês, ao contrário do que se passa nos pontos do globo onde Portugal esteve igual período de tempo. Mesmo em algo tão negativo e trágico como foi o tráfico transatlântico de escravos havia aquilo a que David Eltis — que é talvez a maior autoridade actual nessa área da História — chama “o sistema português” que o diferenciava dos outros.
Para pior? Aparentemente não, e isso traduz-se no número muito baixo de revoltas a bordo de navios portugueses e brasileiros: apenas 11 num total de 572 já identificadas, em marcado contraste com as 488 rebeliões em navios britânicos, franceses, holandeses e dinamarqueses. Outro dado ilustrativo: da zona da Senegâmbia-Guiné partiram apenas 12% do total de escravos transportados para as Américas, mas foi nesses navios que se deram 40% das revoltas a bordo — todavia, nenhuma delas ocorreu em navios saídos dos portos portugueses de Bissau e Cacheu.
Estes quantitativos tão baixos — ou, até, nulos — não resultam de nenhum milagre nem do acaso, mas sim das especificidades do “sistema português”, as tais especificidades que Gilberto Freyre e outros antes dele, assinalaram. É que muitos membros da tripulação dos negreiros que partiam das cidades portuguesas ou brasileiras, eram escravos ou antigos escravos, alguns dos quais tinham a esperança de comprar cativos em África, para depois os revender no Brasil. O ponto importante, porém, não é esse, mas sim o facto de, diferentemente do que acontecia nos navios negreiros provenientes do norte da Europa, esses marítimos serem negros e de, em muitos casos, falarem as línguas dos desgraçados que iam ser embarcados. Isso era muito importante porque ajudava a tranquilizá-los. Convém ter presente que se instalara em África a aterradora crença de que o embarque equivalia a uma passagem para a terra dos mortos, onde os brancos trucidariam os negros e aproveitariam os seus corpos. A sua pele serviria para fabricar sapatos, os ossos para fazer pólvora, a carne para alimento, os seus membros espremidos produziriam óleo, etc. O terror que sentiam com a ideia do que os esperava não é difícil de imaginar. Ora, quando viam, entre os tripulantes dos navios, gente como eles que já fora para o outro lado do Atlântico e que de lá regressava, sã e salva, o nível de inquietação, de desespero e de potencial para a revolta diminuía substancialmente.
Eram coisas dessas que atestavam, mesmo no que teve de mais horrível, a especificidade da relação de Portugal com África. Mas houve, evidentemente, várias outras que a diferenciam da relação de dinamarqueses, franceses e outros europeus do norte com esse continente. Aliás bastará pensar que esses europeus não tiveram, na época do tráfico negreiro transatlântico, e ao contrário dos portugueses, os chamados “lançados”, isto é, homens que se lançavam, que se arriscavam, a viver com os negros, residindo entre eles à margem das directivas da Coroa e, às vezes, da própria civilidade cristã. Logo no século XV se estabeleceram vários lançados portugueses desde o Senegal à Serra Leoa, mas processos equivalentes ocorreram no Congo e, depois, em Angola, onde desde a segunda metade do século XVI os mais afoitos ou menos bafejados pela sorte se infiltraram pelos sertões, em busca de negócio. Vivendo como os naturais, estes aventureiros foram os primeiros europeus a tropicalizarem-se e casos houve em que conseguiram ligar-se pelo casamento às lideranças locais, forjando uma simbiose luso-africana. Estão aí as primeiras raízes do lusotropicalismo e foi apoiado nelas e noutras que Gilberto Freyre teorizou e teve, em parte, razão. Sim, houve aspectos excepcionais na colonização portuguesa. - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez in Observador, 26 de Maio de 2025).