Freud e o rei Paipai

01-03-2016 11:43

Quero começar este artigo com duas referências, a que voltarei adiante. A primeira remete-nos para um episódio da vida de Freud. Conta-se que certo dia uma jovem mãe muito preocupada com eventuais erros que pudesse vir a cometer na educação do seu filho, teria perguntado ao pai da psicanálise como deveria proceder para não traumatizar a criança. Freud ter-lhe-á respondido: "Não quer traumatizar o seu filho? Não o eduque". A segunda referência leva-nos à década de 1980 e ao mundo da infância. Uma das vantagens de ter sido pai nessa época foi ter sido "obrigado" pelos meus filhos a ver a extraordinária série de desenhos animados Willy Fog e a Volta ao Mundo em 80 Dias, que de outra forma nunca teria visto. A série tem passagens inesquecíveis, uma das quais interessa agora. Trata-se do momento em que o herói, Willy Fog, aporta ao Taiti e pede para ser recebido por Paipai, o rei local. Os guardas que apreciam o seu pedido fazem-lhe tantas e tão bizantinas perguntas que, a certo ponto, já maçado com aquelas esquisitices e minudências, Fog lhes ordena: "Deixem-se disso e levem-me ao rei Paipai!".

Tudo isto me ocorreu ao ler um artigo no Público que mais uma vez nos põe face aos exageros do politicamente correcto. O artigo contesta certos manuais escolares e centra-se, sobretudo, num episódio passado com Matilde, uma menina negra. Matilde tem 7 anos e fazia o seu trabalho de casa, estudando o Abecedário sem Juízo, um poema de Luísa Ducla Soares, que iria ser lido na aula no dia seguinte. Ora, ao que diz a sua mãe, Matilde ter-se-á sentido incomodada quando leu nesse abecedário em verso que "E é Eva, olha o rabo que ela leva" e terá ficado verdadeiramente ofendida ao chegar à letra H, pois "H é a Helena, é preta, diz que é morena".

Mas não foram apenas essas duas frases que indignaram a mãe da Matilde. Num outro poema, também de Luísa Ducla Soares, "C é a Camila, com corpinho de gorila"; "G é o Gonçalo, já hoje levou um estalo"; "I é a Inês, a dar beijos num chinês"; e "X é o Xavier, usa roupas de mulher". A autora dos poemas explica que aqueles abecedários em verso são brincadeiras com as palavras e que se destinam a atrair os pequenos leitores através do humor e do nonsense. Acrescenta que nunca foi racista na sua vida e mostra-se muito perplexa com o incómodo que os seus poemas causaram. Nada disso, porém, demove a mãe de Matilde, que exige que aqueles abecedários sejam proibidos nas salas de aulas por não serem "leituras recomendáveis para crianças". Acha que "G é o Gonçalo, já hoje levou um estalo" é um incentivo à agressão e que os pequenos Gonçalos que existem nas nossas escolas poderão passar a ser gozados quando esse poema for lido. Também receia que os meninos chineses se sintam discriminados quando ouvirem dizer que "I é da Inês, a dar beijos num chinês", ou que as Saras fiquem envergonhadas quando se ler "S é de Sara, ela tem dez borbulhas na cara". Em suma, a mãe da Matilde considera que aqueles poemas promovem o racismo, o bullying, a homofobia, o body shaming e outros crimes.

Compreendo a preocupação da mãe de Matilde mas é aqui que devem entrar o bom senso e o Freud com que iniciei este artigo. O que está em causa é a educação das crianças ou, melhor dizendo, a relação entre traumatismo e educação. A crença de que é possível ou, mais do que isso, de que é benéfico e desejável, educar alguém sem lhe causar a mínima perturbação ou incómodo é perfeitamente ilusória. O desejo de criar escolas a tal ponto assépticas que a criança de óculos não possa ser chamada "caixa-de-óculos" pelos colegas, equivale a criar uma redoma e um mundo de hiper-protecção, que nada têm a ver com o mundo real e que não ajudará ninguém a crescer. As crianças têm de saber enfrentar, e de conseguir ultrapassar, os obstáculos e as perturbações que a socialização escolar implica. Como é óbvio não estou a fazer a apologia, ou a propor a banalização e desculpabilização, da violência física ou verbal sobre ou entre crianças. Aqui estamos bem abaixo desse patamar e a tratar apenas de frases que possam, quanto muito, ferir certas susceptibilidades. A forma de controlar ou de minorar o efeito desse tipo de frases, a forma de enrijecer um pouco mais a pele fininha das nossas crianças, não é proibir que elas sejam ditas. Essa é a estratégia do politicamente correcto que, quando a aplica, contribui paradoxalmente para agravar o mal que quer combater pois cria fobias. Digamos que é uma estratégia neurótica: as palavras não podem ser ditas, tornam-se tabus e provocam, adiante, reacções exageradas e desajustadas, caso sejam pronunciadas. Em lugar de negar e de esconder a evidência e a identidade das meninas que são como a Helena, o nosso ensino devia, pelo contrário, estimular o seu orgulho de o serem, devia ajudar a fortalecer a sua identidade de meninas pretas. Esse seria o bom caminho, em minha opinião. Por isso, e porque estamos no universo das crianças, peço aos partidários do politicamente correcto, a todos os que vêm racismo e discriminação em tudo o que mexe, que deixem os livros da Luísa Ducla Soares em paz e que vão directos ao que interessa. Ou, para usar as sábias palavras de Willy Fog, "deixem-se disso e levem-me ao rei Paipai" - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez un Diário de Notícias, 1 de Março de 2016).