Falinhas mansas

22-08-2017 17:02

As pessoas politicamente correctas vigiam (e às vezes corrigem) o que se diz no mundo
ocidental. Porém, ao contrário do que tentam fazer-nos crer, a sua híper-vigilância não é necessária nem nos protege de nenhuma ameaça real. Antes das últimas décadas, isto é, antes do politicamente correcto ter chegado com o seu catálogo de interditos, já havia gente que se expressava sem precisar de correctores do pensamento e da linguagem. Essa gente vivia numa atmosfera mais espontânea e mais verdadeira do que a nossa, sem, por isso, ser necessariamente racista, xenófoba, sexista e todas essas coisas que os fiscais do politicamente
correcto gostam de descortinar, com os seus olhos de raios-x, atrás de cada porta ou debaixo de cada tapete.

Para que serve, então, tanto controlo e vigilância? Haverá quem pense que não serve para nada, que é tão só uma herança tardia dos exageros dos anos 60-70, e os factos parecem confirmá-lo. Alguns deles são tão divertidamente insólitos que as pessoas tendem a sorrir e a aderir a modas e procedimentos que lhes parecem inocentes. Mas não são. Se olharmos com mais atenção vemos que o politicamente correcto corresponde ao projecto social e político daqueles a que Frederick Crews chamou "ecléticos de esquerda", gente mais ou menos próxima do marxismo e
que continua a ter como objectivo a revolução, só que, agora, é de uma revolução cultural que se trata. Essas pessoas acreditam que a língua e as representações moldam e transformam a realidade que se aborda e, portanto, se conseguirem fazer mudar designações, símbolos e imagens, mudarão, a prazo, essa realidade. O seu método "transformador" não conhece, aliás, limites cronológicos e aplicam-no retroactivamente, como no 1984 de Orwell, modificando denominações antigas - numa obra literária, por exemplo - para melhor "ensinar" o presente. Tentam transformar as sociedades a partir de dentro, seguindo a via suave e paulatina da
linguagem, da censura e do ensino. É um marxismo reprocessado a procurar chegar lá pé ante pé, e era bom que os cidadãos que encolhem os ombros perante as originalidades do politicamente correcto se apercebessem de que estão perante uma ameaça à liberdade de expressão e não só.

Não acreditam? Olhem para quem, nos Estados Unidos, quer fazer desaparecer as estátuas de Robert E. Lee e de outras figuras ligadas à história do Sul escravista. Com essa decisão abriram a porta aos racistas e neo-nazis, e à dramática sequência de acontecimentos que conhecemos. Não que não possamos pôr e tirar símbolos da praça pública. Podemos. Mas de acordo com as sondagens só 27% da população concorda com a remoção das estátuas. Porém, os politicamente
correctos não se prendem com esse "detalhe" e as estátuas já começaram a sair ou a cair em Nova Orleans, Baltimore, Durham. As pessoas que as removem ou abatem têm o mesmo espírito e a mesma conduta dos talibãs afegãos que destruíam as estátuas milenares de Buda, mas como usam jeans e frequentam as nossas universidades, achamos que não são uma ameaça. Erro nosso. Eles querem mudar a memória colectiva e conduzem um ataque tão feroz nessa direcção que, se fosse hoje, Joan Baez, a musa da esquerda, já não gravaria The Night they Drove Old Dixie Down. Porquê? Porque essa sua canção de 1971 é uma descrição do modo de ver e de
sentir da gente do Sul durante a Guerra da Secessão. Aliás, a letra refere com admiração e respeito o general Robert E. Lee (cujas estátuas estão a ser retiradas do espaço público). O exemplo desta canção, aplaudida durante décadas mas que agora não ressoaria num campus universitário sem levantar protestos, revela bem o que mudou no nosso mundo em termos de fechamento de espírito, de fanatismo, e o abismo para onde, com falinhas mansas, têm vindo passo a passo a empurrar-nos. É, portanto, tempo de acordarmos e de repararmos que o politicamente correcto não é uma coisa divertida nem inócua. É uma mistura de moralismo e radicalismo, com tanto de Rousseau como de Robespierre, e que mandará instalar as correspondentes guilhotinas assim que puder fazê-lo - João Pedro Marques (publicado pela 1a vez in Diário de Noticias, 22 de Agosto de 2017).