Falando de escravatura. Um ponto prévio

24-04-2017 10:51

Marcelo visitou um entreposto do tráfico transatlântico de escravos especialmente activo no século XVIII, evocou as medidas abolicionistas que o marquês de Pombal tomou nessa época para abolir "a escravatura" numa parte do território português, e foi confrontado, nos jornais e redes sociais, com o regime de trabalho nas colónias africanas no século XX, tempos em que "a escravatura" legalmente já não existia.

Estão admirados? A palavra "escravatura" é uma palavra confusa e, mais do que isso, é propositadamente confusa. A confusão não foi criada pelos que agora a utilizam, e que se limitam a reproduzir um mau uso herdado, mas pelos que, no século XIX, começaram a usá-la com duplo ou triplo significado. Os brasileiros ainda mantêm um uso correcto das palavras. Para eles, a compra e venda de escravos diz-se "tráfico de escravos"; o domínio absoluto de uma pessoa sobre outra e respectiva descendência, que ficam sendo sua posse, diz-se "escravidão"; e "escravatura" é apenas uma outra forma de dizer "escravaria", isto é, uma grande quantidade de escravos. Mas nós, em Portugal, abandonámos e esquecemos essa terminologia correcta e usamos "escravatura" com vários significados - mais usualmente como sinónimo de "escravidão" -, numa misturada que vem, pelo menos, da década de 1830 e do tempo em que Portugal esteve fortemente pressionado pela Inglaterra para que suprimisse o tráfico negreiro que se fazia por via marítima. Convém lembrar que essa pressão chegou a tal ponto que, em 1839, os ingleses aprovaram e aplicaram o Palmerston's Act, uma lei que dava aos navios da Royal Navy poderes para apresar quaisquer navios com bandeira portuguesa que transportassem escravos, ou que estivessem equipados para fazer esse transporte. A medida teve o mesmo impacto nos brios nacionais que o Ultimato viria a ter meio século mais tarde. Foi devido à forte pressão inglesa que Portugal teve necessidade de desenvolver a tese (falaciosa) de que fora o primeiro a abolir a "escravatura" (estando, claro, a referir-se apenas a tráfico de escravos, e apenas numa parcela do seu território, e não à escravidão, que só aboliria de forma gradual entre 1854 a 1875). É certo que a linguagem oficial e jurídica se manteve rigorosa, como poderá verificar quem ler os decretos e as leis que então se aprovaram. Mas em linguagem corrente, no fogo dos periódicos, no calor do debate parlamentar, as coisas começam a misturar-se e a palavra "escravatura" começou a significar "tráfico", "escravidão", tudo isso em conjunto, ou, depois, e por razões inversas, formas de "trabalho forçado" - de europeus, asiáticos ou africanos. Perdeu rigor e é assim, sem conteúdo preciso, que é usada por todos nós. Eu próprio a utilizo, coloquialmente, de uma forma englobante porque sei que é essa a prática portuguesa e que se em vez de "escravatura" usasse, como deveria usar, "estado de escravidão", não seria bem entendido. Aliás, já tinha chamado a atenção para este empadão terminológico num dos meus livros sobre o assunto (Portugal e a Escravatura dos Africanos, ICS, 2004).

Em suma, a palavra escravatura é uma torre de Babel. Mas se tivermos isso em mente, se percebermos, pelo contexto, aquilo que querem dizer-nos quando a usam, talvez se evite que quando alguém se reporta ao tráfico transatlântico de escravos e fala de situações vividas no século XVIII ou antes disso, lhe atirem com a "escravatura" no tempo de Salazar. De outro modo é uma conversa de surdos - João Pedro Marques (publicado pela 1ª vez no Diário de Notícias, 24 de Abril de 2017).