Escudos Humanos e Eurogrupo
Quando falamos em escudos humanos pensamos imediatamente em guerra e no longo e triste cortejo dos seus horrores. Quem souber história imaginará os Mongóis de Gengis-khan a usarem os pobres camponeses como anteparas para se lançarem à conquista de uma cidade amuralhada do norte da China e a trucidarem todos os vencidos à excepção de uma parte deles que lhes irá servir como novos escudos humanos no assalto à cidade seguinte. Ou, então, atravessará a Dalmácia a caminho da Terra Santa com os cruzados de Raimundo IV, conde de Toulouse, e poderá ver como o cruel conde protege a retaguarda do seu exército dos ataques das tribos eslavas por intermédio de uma barreira de prisioneiros.
Mas ainda que sejam estas imagens bélicas que mais rapidamente nos ocorrem quando falamos em escudos humanos, convem não esquecer que a utilização de gente como “carne para canhão” não se confinou (nem confina) ao universo militar. Ao longo do tempo os escudos humanos também foram usados de uma forma mais discreta em tempos de paz, para precaver a guerra ou por outra razão qualquer. A prática de conservar reféns como garantia de retaguarda enquanto decorriam negociações ou armístícios, foi seguida em todas as culturas e em todas as latitudes. Podia, até, suceder que um rei deixasse um dos seus filhos na corte do inimigo como forma de assegurar que não o atacaria.
Hoje tudo isso nos parece um bárbaro vestígio de outros tempos e de outras sensibilidades, algo que nunca poderia reemergir na nossa Europa democrática, a não ser em tempo de guerra, ou seja, num tempo excepcional, sujeito a um código (ou a uma ausência dele) igualmente excepcional. E mesmo nessas circunstâncias, seria algo de inaceitável para muitos de nós. Quem não se lembra da justíssima indignação das nossas opiniões públicas ao saberem que o regime de Saddam Hussein colocava as suas armas e instalações mais valiosas e sensíveis no meio da população civil para tentar impedir que elas fossem atacadas (ou para vir a culpabilizar os atacantes, em caso de bombardeamento)?
Aos nossos olhos, esses métodos desumanos são próprios de cruéis ditadores asiáticos, ou, então, de bandidos que sequestram pessoas e as usam para se protegerem. Infelizmente, e à luz dos últimos acontecimentos na Europa, receio bem que estejamos a ser demasiado optimistas e que estejamos a pactuar inadvertidamente com a criação de novas formas de escudos humanos, formas tão desviadas, tão subreptícias e discretas, que a generalidade das pessoas provavelmente não as identifica nem as concebe como tais. No entanto, a maneira como alguns governos ocidentais têm tentado utilizar os bens das suas populações (ou das populações dos seus parceiros políticos) para cobrir e escorar a banca tem algumas inquietantes analogias com a utilização de escudos humanos em contexto militar. O princípio é idêntico: algo se escuda atrás da população, que é usada como refém ou como garantia.
Esse procedimento, que faz com que as pessoas se tornem avalistas forçadas dos bancos (ou de alguns bancos) foi recusado pela Islândia, aceite, com resignação, na Irlanda e em Portugal, e surge agora com toda a brutalidade e crueza em Chipre. Pelas surpreendentes notícias do passado fim-de-semana ficámos a saber que, em Bruxelas, o Eurogrupo aprovou, com o acordo do governo cipriota, o lançamento de um imposto extraordinário de 9,9 % sobre os depósitos bancários acima dos 100.000 euros e de 6,7 % para os valores inferiores a essa quantia. Em troca desse imposto, os depositantes iriam receber acções do respectivo banco. Como era de prever, nos momentos iniciais a população, em pânico, correu aos levantamentos e às transferências, para tentar baixar os montantes depositados e, consequentemente, os valores tributáveis. Mas o seu esforço foi em vão pois o imposto já estava cativo. Não custa imaginar que os sentimentos de surpresa, de armadilha, de abuso e de revolta dos cipriotas, tenham sido enormes e gerais. As pessoas falavam em “roubo”, “catástrofe”, “extorsão”, e tinham toda a razão: estavam a ser vítimas de um confisco puro e simples.
Depois, nos dias que se seguiram, os políticos que tinham atirado a primeira pedra quiseram esconder a mão, num triste espectáculo de passa-culpas, e montou-se um autêntico carnaval de avanços e recuos que ainda decorre. No momento em que escrevo chega-me a notícia de que o Parlamento cipriota chumbou as pretensões do seu governo e não autorizou o “plano” do Eurogrupo. Não sei o que irá passar-se a seguir, mas levem as coisas o rumo que levarem, as intensões e os métodos do Eurogrupo ficaram claros e são assustadores. Encorajaram (ou coagiram, mesmo) o governo cipriota a que usasse os bens da sua população no apoio ao financiamento do país e no escoramento da banca nacional.
Talvez tenham pensado que o Chipre, sendo um recanto muito periférico da zona euro, se prestava à detonação dessa bomba atómica fiscal sem que isso implicasse grandes consequências, um pouco à maneira das “experiências” que, em tempos idos, americanos e franceses faziam com os seus armamentos nucleares num distante atol do Pacífico. Mas ou muito me engano — e espero bem que sim — ou esta iniciativa do Eurogrupo irá muito para além da violência localizada exercida sobre o Chipre e provocará um tremor de terra. De facto, o Eurogrupo ultrapassou uma linha que tinha prometido nunca ultrapassar e ao fazê-lo pode ter dado uma machadada definitiva naquilo sem o qual o sistema não funciona e a vida em sociedade se torna difícil. Falo, como é óbvio, em confiança básica. Como reagirão as pessoas futuramente na sua relação com os bancos e com o Estado, não apenas em Chipre mas também nos outros países da União Europeia? Continuarão a confiar na banca e nas promessas dos governantes ou encararão toda essa gente que rege o nosso mundo a partir de Bruxelas e de Berlim como uma espécie de Gengis-Khans em potência que se lançam ao assalto da próxima cidade amuralhada? Há mais uma série de bancos em dificuldades? Então ordena-se aos governos que amarrem as suas populações a esses navios prestes a afundar-se e o sistema mantem-se à tona. E o mais alarmante desta situação nem sequer é a iminência do próximo ataque ou o abusivo método de salvamento. O mais perturbador é que se percebe que os governantes não são fiáveis. As promessas que hoje nos fazem, as garantias que hoje nos dão, amanhã são invertidas e rasgadas. Não há certeza de nada, o que aprofunda cada vez mais os aspectos psicológicos da crise. Os políticos e financeiros — porque nos últimos anos os financeiros têm co-governado os países, ou, pelo menos, certos países — que nos trouxeram até aqui apoiados em lindas teorias, aparecem aos olhos dos cidadãos governados como aprendizes de feiticeiros, que puseram em marcha uma série de procedimentos e de jogadas que pura e simplesmente não controlam. Criaram um Frankenstein financeiro que se virou contra o criador e que nos destrói a todos.
Aqui há uns anos, Barbara Tuchman, uma historiadora que ganhou por duas vezes o Pulitzer, escreveu um livro intitulado The March of Folly. From Troy to Vietnam. O livro é uma digressão pela estupidez humana, ou melhor, é a análise de uma série de decisões absurdas e pesadas de consequências, tomadas pelos detentores do poder. Nunca esperei ver as páginas de Tuchman materializarem-se à frente dos meus olhos, mas realmente os homens nunca aprendem - João Pedro Marques (Publicado pela primeira vez in Público, 24 de Março de 2013).