Escravos, memória e História
No passado dia 10 de Maio a França viveu uma jornada nacional de memória da escravatura e da sua abolição. Os poderes públicos, as escolas, a rádio, a televisão, incentivaram a nação a que tomasse plena consciência dessa parte da sua história e de Marselha a Paris, milhões de franceses irmanaram-se no repúdio por velhas formas de exploração humana, no elogio dos heróis que contra elas lutaram e na evocação dos “mortos sociais” que os escravos foram. No Jardin du Luxembourg o Presidente Chirac pronunciou um discurso no qual reivindicou para a França não tanto o papel de líder no combate à escravatura — mentiria, se o fizesse — mas o de pioneira na luta em prol da memória. Como disse, “la France a ouvert la voie aux autres nations: mémoire et justice doivent être rendues à ces millions de victimes anonymes de l’esclavage”.
A grande manifestação colectiva de 10 de Maio é o ponto de chegada de um mecanismo que tem vindo a ser construído há vários anos e que terá tido o seu momento fulcral em 2001, quando, sob proposta da deputada Christianne Taubira, o Parlamento francês aprovou uma lei que classifica o sistema escravista desenvolvido pelos europeus a partir do século XV — e apenas o sistema europeu, note-se — como um crime contra a humanidade. Entre outras disposições, a lei Taubira obriga o estado a defender a memória dos escravos e a honra dos seus descendentes, punindo quem contra elas atente.
Vista de Lisboa, na perspectiva de alguém que estuda a história da escravatura há 20 anos, toda esta movimentação tem qualquer coisa de deslocado e de redundante. Ainda que não tenha tido a precocidade e a consistência abolicionista da Grã-Bretanha, a França foi um dos primeiros estados coloniais europeus a suprimir eficazmente o tráfico de escravos (no início da década de 1830) e a decretar o fim da escravidão nos seus territórios (em 1848). Ou seja, os acontecimentos que os franceses agora celebram, compungidos e emocionados, ocorreram há quase 160 anos e foram devidamente celebrados na altura e de então para cá, tanto na metrópole como no ultramar.
Por outro lado, a classificação do tráfico e da escravidão como crimes contra a humanidade — classificação que a França actual pretende fazer passar por inédita conquista cívica e jurídica — é em boa parte o mero agiornamento de perspectivas antigas. A classificação do tráfico de escravos como “crime contra as gentes” — pois era esse o conceito então usado — foi introduzida pelos primeiros abolicionistas, está consignada nas leis e tratados anti-escravistas sucessivamente aprovados de há 200 anos para cá em toda a parte do Ocidente e, o que é mais importante, está profundamente gravada na mente e na sensibilidade de europeus e americanos. Entendamo-nos bem. O tráfico negreiro e as relações de exploração extremas inerentes à escravidão colonial foram enormes abominações, e como tal têm sido entendidas pelas nações ocidentais, as primeiras que as estigmatizaram e interditaram. Quando um Sá da Bandeira, por exemplo, dizia que o tráfico era um crime que não prescrevia, constatava uma evidência e verbalizava a opinião que se ia impondo ao homem educado. Não foi por acaso que os romances anti-escravistas de Harriet Stowe se tornaram nos primeiros best sellers do mundo. Recorde-se que o famosíssimo A Cabana do Pai Tomás e o não tão famoso Dred, foram traduzidos em dezenas de línguas diferentes, adaptados ao teatro e vulgarizados sobre a forma de folhetim. Ambos venderam, logo no seu primeiro ano de edição — 1852 e 1856, respectivamente —, centenas de milhares de exemplares, números espantosos quando se sabe que foram precisos cerca de 10 anos para que Moby Dick, de Melville, chegasse aos 2 mil exemplares vendidos. Na verdade, depois de Stowe e de centenas de outros anti-escravistas de Oitocentos, nenhum país do Ocidente necessita que abolicionistas de reprise lhe venham recordar factos e sentimentos de há muito interiorizados.
Não obstante, esse abolicionismo de reprise aí está, pelo menos numa França onde se sucedem várias iniciativas que, consciente ou inconscientemente, reproduzem um caminho já percorrido. O discurso moralista e culpabilizante, a acção junto dos eleitorados para que elejam apenas os candidatos que se comprometam publicamente a favor da causa, as pressões sobre os governos estrangeiros para que adoptem um posicionamento idêntico, correspondem à estratégia e ao modus faciendi dos abolicionistas de Oitocentos. Tudo se passa como se o espírito e as metas desses abolicionistas — espírito e metas que se justificavam plenamente nesse tempo — tivessem sido apropriados e surgissem agora, uma segunda vez, a exigir dos europeus a expiação de pecados passados e já amplamente expiados durante o século XIX.
Mas este decalque do abolicionismo desempenha, agora, um papel histórico totalmente diferente pois é — ou tenta ser — um método de integração social da comunidade de origem africana ou afro-americana residente em França. Essa comunidade conta actualmente com mais de 5 milhões de pessoas, muitas delas ligadas a grandes associações como o CRAN (Conseil Représentatif des Institutions Noires de France) ou Le Collectif des Antillais, Guyanais, Réunionnais. Essas e outras associações fazem parte dos chamados grupos memorialistas, isto é, grupos de pessoas que se auto-intitulam “descendentes” ou “herdeiros” dos que viveram momentos dolorosos da história ocidental — “descendentes de escravos”, neste caso —, classificação que lhes permite fundamentar não só um pedido de reparação material mas também aquilo que designam por “restituição da memória”. Por outras palavras, pretendem que a memória que têm de acontecimentos passados seja reconhecida e oficializada, inclusive por via legal. Os mais radicais querem pura e simplesmente impor uma visão das coisas muitas vezes fundada sobre uma argumentação mítica, carregada de ódios ou de ressentimentos; os mais moderados procuram harmonizar a memória africana (ou afro-americana) com a memória europeia dos acontecimentos de molde a que ambas possam convergir numa história comum em que brancos e negros se reconheçam. Essa história comum seria, então, a bissectriz das várias memórias, bissectriz que seria protegida através da instalação de um aparelho persecutório — o que já foi conseguido com a lei Taubira — que permitiria punir qualquer pessoa que se desviasse da ortodoxia assim estabelecida.
Estas aspirações têm encontrado eco no parlamento e, perante o aumento da pressão e, até, da violência que tem marcado os últimos tempos em França, o governo vai-se esforçando por apaziguar as tensões sociais, por integrar as minorias e por soldar uma sociedade fragmentada e em vias de tribalização. Daí a celebração vivida em 10 de Maio. Como Chirac disse, na ocasião, “regarder notre passé en face, c’est une des clés de notre cohésion nationale (...) à travers le souvenir de l’esclavage et de ses abolitions, c’est aussi la diversité française que nous célébrons aujourd’hui”. São palavras compreensíveis mas que parecem decorrer de uma fuga em frente que abrirá a porta a sucessivas exigências de santificação de memórias particulares e de penalização para os heréticos. Na verdade, o que significa “regarder notre passé en face”?
A resposta cabe aos historiadores e não ao parlamento francês. Os historiadores não deverão ceder perante os políticos que, pressionados, pretendem moldar a História consoante as conveniências do momento; e muito menos deverão ceder às ameaças e ao terrorismo intelectual dos grupos memorialistas. Na sequência da aprovação da lei Taubira, a pressão e intimidação que estes exercem sobre os historiadores subiu assinalavelmente. Há cerca de um ano Pétré-Grenouilleau, autor de um livro triplamente premiado pela academia mas não inteiramente conforme com os novos cânones, foi processado ao abrigo dessa lei, acusado, entre outras coisas, de difamação racial e de fazer a apologia de um crime contra a humanidade.
Face ao crescente nível dos ataques, um grupo dos mais prestigiados historiadores franceses avançou com um pedido de revogação da lei Taubira (e de outras leis que têm resultado da recente propensão do parlamento francês para se imiscuir no terreno da historiografia). Essa reacção provocou o recuo dos que acusavam Pétré-Grenouilleau, mas trata-se de um recuo meramente táctico. Novas cenas se seguirão e o problema chegará inevitavelmente a Portugal, seja por via directa ou, mais provavelmente, indirecta. Convém não ignorar que a lei Taubira impôs a realização de abordagens junto do Conselho da Europa e das Nações Unidas para que adoptassem legislação similar, e que os grupos memorialistas querem dispor de meios legais que lhes permitam processar as vozes dissidentes em toda a comunidade europeia.
É, por isso, vital fazer sentir à sociedade e ao universo político português que a bissectriz das memórias não equivale à verdade histórica. As memórias são fragmentadas, geralmente emotivas e parciais. A História, pelo contrário, é crítica, global e constitui uma riqueza colectiva; os que a produzem não podem ser constrangidos por verdades oficiais. Aliás, a História é, por essência, revisionista, no sentido em que põe permanentemente em questão as verdades de ontem. O historiador recolhe as recordações dos homens, compara-as entre si, confronta-as com documentos e vestígios do passado, e estabelece os factos. A História tem a memória em consideração mas não se reduz a ela. Se a memória é importante para afirmar a identidade das nações e das minorias, a História é imprescindível para repor o equilíbrio entre diferentes visões do passado - João Pedro Marques (publicado inicialmente in Nova Cidadania, nº 29, Setembro de 2006).