Escravatura - 2ª parte

05-02-2014 10:57
 

 

Como escrevi na 1ª parte deste artigo, quem derrubou a escravatura foram as elites políticas e culturais do mundo ocidental quando se convenceram de que escravizar os homens era não apenas errado, mas economicamente estúpido. Mas, ao contrário do que então se pensava, a escravatura não desapareceu de vez. Em certos casos foi apenas varrida para baixo do tapete, para ressurgir quando as condições políticas o permitiram. Noutros casos a escravatura foi substituída por coisas aparentadas. Penso, nomeadamente, nos portugueses e asiáticos que iam trabalhar para as Américas e que ficavam sujeitos a condições quase tão violentas e aviltantes como as dos escravos. Penso, também, nos povos de África, onde a escravidão foi acabando a pouco e pouco mas apenas para dar lugar ao trabalho coercivo legitimado por leis contra a vadiagem — e aos olhos dos brancos quase todos os africanos eram ociosos e vadios. 

Isto significa que, apesar de ilegal, a escravatura tem estado sempre à espreita, na sombra, e que, se querem contê-la, os detentores do poder político têm de lutar permanentemente contra o aparecimento de novos “negreiros” e de novos “senhores”, isto é, contra a tendência, fundada no interesse económico, para escravizar os outros. Ora, por terrível desgraça, as elites políticas actuais parecem desligadas do problema e, pior do que isso, toleram complacentemente formas de exploração laboral que reproduzem aspectos da escravidão. O que tem vindo a passar-se no campo das relações de trabalho e, sobretudo, no da sua remuneração, é altamente inquietante, sobretudo se for visto em paralelo com várias propostas e, até, com medidas concretas, para institucionalizar o trabalho coercivo e gratuito. Ainda recentemente o Parlamento da Hungria aprovou uma lei que criminaliza os sem-abrigo e que permite condená-los a trabalho cívico. No nosso país as coisas ainda não chegaram tão longe — e esperemos que nunca cheguem — mas todos nos lembramos que já houve economistas que quiseram pôr os desempregados a limpar as matas ou a desempenhar tarefas equivalentes, sem pagamento.

Ideias como essas vão singrando no nosso mundo porque há uma tolerância generalizada para com os abusos e injustiças na área laboral. No caldo cultural de aperto em que nos mergulharam, e onde a economia se erige como o valor supremo e o fim que justifica todos os meios, as pessoas foram-se habituando a aceitar como muito natural que um estagiário trabalhe num escritório de advogados, ou num atelier de arquitectos, sem receber qualquer vencimento. Ou, então, que um doutorando dê aulas numa universidade sem receber remuneração, correndo essa para o cofre do departamento ou para o bolso do catedrático.

E porque é que aceitamos situações destas? O primeiro passo para a aceitação dos abusos está nas nossas cabeças, quando acomodamos e toleramos coisas obviamente erradas e injustas, procurando justificá-las com o argumento da necessidade ou outro equivalente. E esse é, como sempre foi, um passo perigoso. O primeiro carregamento de escravos vindos de África desembarcou em Lagos em 1444. E ao presenciar o desembarque e a partilha dos negros, o cronista Gomes Eanes de Zurara comoveu-se com o choro de pais e filhos, separados uns dos outros. Mas, depois, tranquilizou-se dizendo a si mesmo que aquela violência era necessária e que, com o correr do tempo, os próprios escravos seriam beneficiados pois aprenderiam ofícios e a verdadeira religião, salvando as suas almas.

Foi preciso esperar até ao século XIX para que um raciocínio como o de Zurara deixasse de ser tranquilizador e convincente. Só então a complacência pró-escravista de gente como Zurara foi vencida pelas ideias abolicionistas. Mas da mesma forma que foi a ideologia que acabou com a escravatura — porque passou a vê-la como coisa intolerável e criminosa — pode ser uma outra ideologia a abrir-lhe a porta, para que regresse. Não se julgue, portanto, que a situação retratada no filme 12 Anos Escravo, é apenas história antiga. Muito daquilo poderá repetir-se. Convem não esquecer que foi somente há 70 anos que os nazis tiveram cerca de 7 milhões de escravos a trabalhar nos seus campos e nas suas fábricas. João Pedro Marques (Publicado pela 1ª vez in Jornal i, 5 de Fevereiro de 2014).