Escravatura - 1ª parte

04-02-2014 09:32
 

 

Fui ver o filme 12 Anos Escravo e, como não podia deixar de ser, vi-o com os olhos de quem dedicou vinte e tal anos da sua vida profissional ao estudo da história da escravatura. Nessa qualidade, o filme encheu-me as medidas. Os castigos brutais, os abusos, o desvalimento total dos escravos e as suas estratégias de sobrevivência, eram inerentes à situação de escravidão no Sul dos Estados Unidos e estão retratados no filme com grande autenticidade. Tal como estão fielmente reproduzidas as condutas dos senhores, a sua lógica económica, o sadismo de alguns, a complacência de outros, a forma como procuravam justificar ideologicamente a existência da peculiar institution, perante Deus e os homens.

Mas não é do filme propriamente dito que quero falar mas do que podemos extrair dele. Uma lição de História? Uma viagem pelo lado negro da alma humana? Eu gostaria que ele fosse, sobretudo, um alerta para os tempos futuros. A generalidade das pessoas olhará para as cenas cruéis e injustas que o filme nos mostra, com um misto de piedade e de revolta, com solidariedade para com os escravos e surpresa e repulsa perante a perversidade dos plantadores, mas sentirá tudo isso com o afastamento com que costumam encarar-se os horrores antigos, coisas passadas lá longe no tempo e no espaço, e que não mais voltarão a perturbar o mundo civilizado em que vivemos. Lamento dizer aos que assim pensam que essa ideia securizante se arrisca a estar muito errada. Lêem-se com cada vez mais frequência, nos jornais, notícias de pessoas que perderam a sua liberdade e que são exploradas como escravos. Isso não acontece apenas na longínqua e insegura África mas aqui ao pé, numa insuspeita quinta espanhola. Ou, então, numa casa de alterne num inócuo edifício de beira de estrada no Ribatejo, onde mulheres são privadas da liberdade e postas a render na prostituição, como as antigas escravas de ganho no Brasil. A escravatura (entendida, aqui, no sentido englobante da palavra, isto é, como tráfico de seres humanos e sua manutenção num regime de escravidão) está a crescer no mundo e não admira que assim seja. Os Estados e a opinião pública — e convem lembrar que o fim da escravatura, no século XIX foi, acima de tudo, o triunfo da opinião pública — deixaram aparentemente de se preocupar com o problema e, quando isso acontece, ele medra como uma erva daninha.

Ao contrário do que geralmente se pensa a escravatura não é uma coisa anómala (no sentido de ser incomum) e se deixada correr livremente, reaparecerá em todo o seu arbítrio e horror. De facto, a escravidão não desapareceu do nosso horizonte por ser — como efectivamente é — moralmente errada e condenável à luz da religião e da filosofia. Excepção feita ao caso do Haiti, também não acabou por ter sido derrubada por escravos revoltosos. Em boa verdade, as pessoas toleravam a escravatura e ela só desapareceu porque houve quem a combatesse tenazmente, décadas a fio, com grande sacrifício de meios e de homens (é bom não esquecer que, nos Estados Unidos, o fim da escravatura implicou uma guerra que causou a morte a 620 mil soldados). Quem derrubou a escravatura foram as elites políticas e culturais do mundo ocidental que, em princípios do século XIX se convenceram — e forçaram os outros a convencer-se — de que escravizar os homens era não apenas errado, mas economicamente irracional. Ou seja: o fim da escravatura foi resultado daquilo que Tocqueville designou por “ilustrada vontade dos senhores”. Por infelicidade, nos nossos dias a “ilustrada vontade” dos actuais “senhores” aponta em sentido contrário. Ao mesmo tempo que contemplam, com relativa indiferença, práticas que reproduzem a escravidão de outros tempos, os detentores do poder toleram ou, mais do que isso, promovem, modos de exploração do trabalho que são quase sucedâneos da escravidão. Mas isso fica para a 2ª parte deste artigo - João Pedro Marques (Publicado pela 1ª vez no Jornal i, 4 de Fevereiro de 2014).