É apenas rock and roll (mas eu gosto)

18-10-2016 10:05

Nasci em 1949 e apanhei em cheio a enorme onda vocal e instrumental que, graças à invenção do rock, inundou o mundo de novidade e de musicalidade. Como diz Paul Simon, nessa época a música fluía, espantosa, e vinha até nós. Eu vivi-a apaixonadamente, aprendi a cantá-la e a tocá-la na guitarra. Continuo a saber de cor muitas dezenas de canções desse tempo, a vibrar com o ritmo ou com a harmonia, a emocionar-me com a beleza e a sensibilidade dos poemas mais intimistas. A música popular anglo-americana faz parte da minha cultura, ajudou-me a tornar-me pessoa, foi um elemento importante no meu amadurecimento e na formação do meu sentido estético e da minha consciência social. O que significa que devo muito aos compositores desse tempo, entre os quais está, em lugar cimeiro, Bob Dylan.

Dito isto, fico perplexo com o facto de lhe terem atribuído o Nobel da Literatura. Não questiono o seu mérito como criador de canções. Dylan foi um arauto de causas e um extraordinário compositor. Joan Baez dizia que ele era muito bom com as palavras e é verdade. Mas para além disso, há, nas letras das suas músicas, uma perspicácia analítica, uma profundidade crítica, uma filosofia espontânea ou trabalhada, que são difíceis de igualar. O prémio que recebeu não é usurpado nem imerecido, mas é deslocado e diz tanto sobre a incontestável qualidade da sua obra como sobre o espírito com que o premiaram e o têm louvado. As pessoas que, como eu, cresceram a ouvi-lo têm, hoje, a faca e o queijo na mão. Pela sucessão natural das gerações, os que viveram o espírito libertário, feminista, emancipacionista, contestatário, nas décadas de 60-70 encontram-se, agora, em lugares de selecção e decisão e, pelo que se vê, ainda transportam consigo, a par de antigas idolatrias, o velho sonho de arrumar o mundo segundo outros padrões - we can change the world, rearrange the world. A atribuição do Nobel da Literatura a Dylan parece ser uma dessas desarrumações da ordem estabelecida, coisa que a minha geração tinha como plano de vida e na qual foi useira e vezeira.

Há quem persista nesse espírito. Miguel Esteves Cardoso, por exemplo, escreveu o seguinte, no Público: "Dantes toda a literatura se dividia em categoriazinhas de merda - canções, contos, ensaios, reportagens, ficções, peças teatrais, poesia. O júri do Nobel tem feito o enorme favor de voltar a confundir tudo". Bem, por essa ordem de ideias, podíamos acabar também com essa "categoriazinha de merda" chamada "literatura", para confundirmos tudo ainda melhor. E, assim sucessivamente, de confusão em confusão, até ao caos primitivo.

E para quê? Tanto quanto posso ver, a minha geração saudou de forma quase unânime a atribuição do Nobel a Dylan. Reviu-se nela com o gosto um pouco juvenil de quem acaba de conquistar as Altas Esferas. Lembro-me de ser adolescente e de ter gostado imenso de ouvir dizer que os poemas que o Paul Simon escrevia e cantava eram estudados em certas universidades americanas. Isso pareceu-me, na altura, bom sinal porque vinha dar um lastro de seriedade àquela que era a nossa cultura. Afinal de contas a música de que eu gostava não era apenas som para a geração a que eu pertencia; tinha o selo de qualidade do saber universitário. Bom, mas isso era o que eu pensava quando tinha 16 anos. O tempo passou, eu próprio fui para a universidade, vi como aquilo era por dentro e passei a relativizar e a dispensar atestados dessa natureza. E o que hoje pergunto à minha geração é se será preciso ou adequado colocar um dos seus músicos e compositores no pedestal do Nobel para lhe dar importância e seriedade que ele já ganhou pelo seu próprio mérito no tempo e no local devidos? Para quê confundir e amalgamar tudo? Como dizem os Rolling Stones e os Genesis, it is only rock and roll (but I like it). Sim, Dylan é rock and roll, em sentido lato e figurado, e não tem de ser outra coisa. As músicas e as palavras com que nos brindou são extraordinárias e valem por si mesmas, de acordo com os cânones e os critérios de qualidade que lhes são próprios. Recompensar o seu autor com o Nobel da Literatura é, salvo melhor opinião, um caso de adolescência tardia e uma confusão de registos - João Pedro Marques (publicado pela primeira vez in Diário de Notícias, 18 de Outubro de 2016).